quarta-feira, 6 de junho de 2007

VISLUMBRE DE FELICIDADE

Faz frio em São Paulo. E eu gosto muito do frio. Combina comigo e com o meu estado de espírito atual. Tudo em mim neva. Congelo-me facilmente. E não consigo mais ficar na janela. Em compensação sou a própria janela. Pingos de chuva chocam-se contra mim. E não grito. Suporto. Aliás, tenho suportado tantas coisas. A minha lágrima não cumpre o seu percurso. Não porque não quer. Antes, petrifica-se. No meu rosto. Ali. Imóvel. Para derreter na primavera. Se não for tarde demais. E andando pelas ruas úmidas vejo uma cena incrível. Solar. Saía do supermercado com as minhas pequenas compras nas mãos. Vento. Chuva fina e intermitente. Não muito longe dali, um velhinho caminha com certa dificuldade. Não tem pressa. A vida já se perdeu de vista. Traz, no corpo, apenas um cardigã cinza. No rosto, pesadas armações que lhe conferem uma imagem de intelectual de séculos atrás. Os olhos talvez fossem claros. Cabelos brancos. Não resisti e fiquei observando tudo. Qual seria a sua intenção ao se aproximar daquela casa? Por que parou diante do portão de ferro? Eis que surge do interior um cão. Caramelo. Pêlos eriçados. Aproxima-se do portão querendo festa. O velhinho obedece. Os dois ficam ali por alguns instantes. Carinhos. Afagos na manhã cinza e fria de maio. Parecem se entender muito bem. Código do amor. Amor que não exige compensações. Apenas livre doação.

*Foto tirada numa exposição sobre o poeta Mario Quintana, no centro de São Paulo (2006).