sábado, 8 de dezembro de 2018

A BELEZA ESTRANHA DE TINTA BRUTA


Está rolando em Amsterdam, nesta semana, o International Queer & Migrant Film Festival, um dos festivais mais interessantes de reflexão sobre a cultura queer, ativismo e migração, o qual tive a honra de participar, no ano passado, com o meu curta “Sábado de Carnaval”, como parte do programa de residência. Lá, conheci muitos jovens diretores do mundo todo, durante uma semana inesquecível! A programação é bastante variada, com debates muito interessantes e tudo coordenado por uma equipe jovem e criativa. Vou citar apenas quatro deles: Chris Belloni, Antoni Karadzoski, Eero Nurmi e Lara Nuberg (pessoas por quem tenho o maior carinho, pelas causas que defendem e pelo modo como nos trataram, no ano passado). 

Tão logo saiu a programação deste ano, fiquei de olho nos filmes e selecionei alguns para assistir, sobretudo os brasileiros (quatro, se não me engano), mas como a minha vida está cheia de sobressaltos emocionais, ultimamente, cogitei a possibilidade de não ir à abertura, com a exibição do filme “Tinta Bruta” (Hard Paint), de Marcio Reolon e Filipi Matzembacher. Por sorte, me obriguei a ir. Estava exausto, física e emocionalmente, mas fui. Cheguei em cima da hora, não tinha mais ingressos, mas houve alguma desistência e consegui o meu. A abertura oficial teve apresentações da equipe e júri e até uma fala para explicar a vitória do #elenão. Desnecessário dizer que, nessa hora, morri de vergonha.

Depois de assistir ao filme, saí da sala bastante emocionado. Vou tentar resumir o que é esse filme, a minha percepção sobre o mesmo e por que, na minha opinião, ele é um divisor de águas, dentro do seguimento de filmes LGBTQI+ nacionais. Em linhas gerais, é a história de Pedro, um jovem que faz performances eróticas na webcam, com o corpo coberto de tinta neon, enquanto a sua vida pessoal está desmoronando: processado criminalmente, pessoas próximas e queridas se afastando, sem dinheiro pra pagar o aluguel do apartamento onde mora, etc. Um filme envolto numa atmosfera de niilismo, de descrença no outro, onde tudo parece dar errado, ambientado numa sociedade voraz por querer encaixar as pessoas em rótulos e padrões. 

Apesar de ser um filme nacional, a linguagem é totalmente europeia e digo isso sem o menor preconceito. Quem assistiu "Beira-Mar", também da dupla, percebe que eles adoram diálogos longos, um ritmo bem lento, paisagens melancólicas e narrativas existencialistas. "Tinta Bruta" não foge muito do que talvez já seja uma linguagem de trabalho deles, mas o roteiro em três atos, focado em três personagens, trouxe uma bossa ali. Os diálogos são bem feitos, com ótimas tiradas, mas o que me chamou atenção, mesmo, foram as cenas de violência: muito bem dirigidas. Chega a dar um certo calafrio, tamanho realismo. As atuações, no geral, são muito boas, com destaque pro ator Shico Menegat (Pedro/GarotoNeon), mas nada tão extraordinário. A fotografia também é bastante bonita e a trilha é excelente.

Imagino que algumas pessoas podem questionar sobre um certo radicalismo, no filme. Bobagem. Tudo se resolve dentro do contexto e o resultado é ótimo, nada gratuito ou exibicionista. As cenas de nu explícito são justificadas e bonitas. E, nesse aspecto, ele não está sozinho também, "Festa da Menina Morta" e "Boi Neon", por exemplo, já se valeram do mesmo artifício. Espero que ninguém deixe de assistir por causa disso.

Mas, fora tudo isso que já escrevi (e não foi pouco), o que mais me surpreendeu, sem dúvida, foi o fato de ser um filme pretensamente queer, para além das questões de gênero e sexualidade, o que, pra mim, é quase inédito entre os filmes desse gênero, no Brasil. Pedro é o que se pode chamar de gay desconstruído, para usar um termo da moda. E as cenas de sexo, que tem motivações diversas, não tem um peso maior que a própria complexidade dele em existir (ou seria resistir?). Um filme totalmente fora da casinha, mas que veio em boa hora. Torço muito para que muitas pessoas possam perceber também a sua beleza, digamos... estranha. 

sábado, 1 de dezembro de 2018

POR QUE BOHEMIAN RHAPSODY É TÃO BOM


Faz alguns dias que estou ensaiando voltar a postar, mas a correria por aqui foi tão grande e alguns momentos tensos de ansiedade me impediram também. Mas tive uma folguinha, hoje, e vim correndo contar um pouquinho o que achei sobre o filme “Bohemian Rhapsody”, mais conhecido como o filme da banda Queen, e sobre a importância do dia de hoje, “Dia Mundial de Combate à AIDS”.

Estava cheio de expectativa, mas com um certo pé atrás também, porque durante o ano assisti a vários filmes musicais ou documentários sobre astros da música e meio que as histórias se repetem, né? Sempre um grande talento batalhando por um lugar ao sol, chega lá, mas depois não suporta as pressões da indústria ou a solidão e se enche de drogas, etc e, quase sempre, morre de forma dramática. Dificilmente, um diretor consegue fugir dessa fórmula e o espectador termina de assistir ao filme, com aquele sentimento de pesar, se indagando: “Mais um? Que tristeza”. 

Bohemian Rhapsody não foge muito a essa regra, mas os diretores (Bryan Singer e Dexter Fletcher) foram tão ousados em não se prenderem tanto aos fatos reais que resultou numa obra muito mais interessante e emocionante. O primeiro destaque, pra mim, é o roteiro (repleto dessas frases de efeito que eu brinco dizendo que o roteirista já escreveu pensando no trailer). Todo centrado na trajetória da banda e não apenas nas tragédias particulares do líder Freddie Mercury. Embora tudo gravite em torno dele, para o bem ou para o mal, não existe a possibilidade de um integrante eclipsar o outro, é a história da banda. Ponto. Por outro lado, não tem como não se render ao talento do ator Rami Malek, que interpreta muito bem o cantor Freddie Mercury. Já apostam nele como candidato ao Oscar e não é exagero. 

Apesar dele ter dito que o trabalho foi baseado muito mais em improvisos e que não houve a intenção de reproduzir com tamanha fidelidade as apresentações da banda, basta ver as apresentações originais para notar a incrível semelhança. Ele conseguiu resgatar o mesmo carisma do cantor, os trejeitos, usar aquela prótese nos dentes que não deve ter sido nada fácil e tudo isso sem parecer caricato. Pra mim, é uma das melhores atuações, em anos! O mérito é tanto do ator quanto da direção, claro, mas sobretudo do bom roteiro. Apostar num Freddie Mercury solitário, fora dos palcos, fisgou o coração das pessoas.

Achei ótimo o filme não focar na homossexualidade e muito menos no calvário que era a descoberta do HIV, naquela época. Isso tudo, invariavelmente, roubaria a atenção para o que, de fato, importa: o talento dele e da banda como um todo. Porém, eu particularmente elegi a cena emocionante do resultado positivo do teste de HIV dele, como uma das minhas favoritas. Exatamente, por sintetizar em apenas alguns segundos, com bastante humanidade, aquela angústia que devorava, sobretudo, os gays. Ele descobre o diagnóstico sem fazer escândalos e ao sair do consultório, num desses corredores gelados de hospital, está sentado um paciente em estágio já avançado da doença. Este paciente o reconhece e balbucia um refrão de uma das músicas do Queen. Freddie Mercury, então, para e completa o refrão, como quem diz “Estamos no mesmo barco”. Simples, tocante, muito provavelmente não aconteceu de fato, mas que serve como exemplo de liberdades poéticas que eles souberam usar muito bem. 

A partir daí, o filme ganha muito em emoção e é impossível não se entregar à história. O reencontro com os outros componentes da banda, depois do rompimento, vem logo em seguida e fecha com o histórico show do Live Aid, em 1985. Resumo da ópera: é um filme excelente, nostálgico, emocionante, pra quem curte rock ou não. A crítica e o público aclamaram, com toda razão. E é, óbvio, que vale também como reflexão para o dia de hoje, que se comemora o dia mundial de combate à AIDS. Não podemos esquecer que ainda não vencemos à batalha e que é importante se cuidar. Mas sobretudo dar um basta ao preconceito e acolher aqueles que vivem com HIV. Artistas com HIV, felizmente, não agonizam mais em praça pública e isso já é um grande alívio!