sexta-feira, 24 de setembro de 2010

PRIMAVERA

Um cheiro sufocante de rosas enchia de peso o ar, rosas malditas na sua força de natureza doida, a mesma natureza que inventava as cobras e os ratos e pérolas e crianças – a natureza doida que ora era noite em trevas, ora o dia de luz. Esta carne que se move apenas porque tem espírito. C.L.




Meu pai ainda insistiu. Eu disse que não. Era uma tontura passageira e eu logo estaria encarando a cidade de igual para igual. Não teria problemas. Ele viu que eu tropeçava em mim mesmo. Cambaleava. Também não estava bêbado, se é que alguém pensou nessa posssibilidade. Efeito talvez de alguns remédios. Não, também não eram balas dessas que quase paralisam as pessoas em festas intermináveis. Ele quis que eu fosse de carro. Ou chamasse um táxi. Mas não era tão longe. Até me seguiu para ver se eu mudaria de ideia. Insisti que ele voltasse. Lembrei-me de Judas dizendo “todos passam a mão na sua cabeça”. Declinei o convite na hora. Não por causa de Judas, claro. Mas por achar que ainda tinha alguma dignidade. Meu pai me levaria de carro aonde quer que eu fosse, porque a sua bondade não conhece limites. Mas voltando... Não. Eu não gosto de dar trabalho, trago comigo essa coincidência com a escritora Lygia Fagundes Telles. Numa entrevista à Clarice Lispector, acho que para a saudosa Manchete, Clarice logo lembrou que Lygia nunca dava o menor trabalho. Eu sou assim também. Tenho pavor de que me levem nas costas.

Hoje choveu um pouco. E à noite, quando saí, principalmente. Saio quase sempre à noite. Caía uns pingos tímidos que nem me convenceram a levar um guarda-chuva. Então tomei um ônibus. Lotado naquele horário. Estava tão imerso em coisas “ruins”, com o sono acumulado dos últimos dias, que mal notei quando uma senhora me pediu licença. E quando ela o fez e eu vi que estava com uma criança, no colo, tive um susto. Uma criança absurdamente linda. E aquela criança provocou em mim uma imensa felicidade. O meu ou o seu nome poderia ser Felicidade. Aliás, quando volto para comprar aquele Katherine Mansfield? Espero que ainda esteja lá, à minha espera. Mas o livro que fui buscar foi “Noites Tropicais”, do Nelson Motta, emprestado gentilmente pelo querido Tássio Marques, a pretexto de uma pesquisa para um monólogo que me encomendaram. Ele me indicou tudo certo, número, rua, prédio, mas eu me perdi. Eu quase sempre me perco à noite. É como se a escuridão gostasse de brincar de cabra-cega comigo. Como se ela visse algum prazer infantil nisso. E eu quase sempre concedo. Eu entrava numa rua, saía por outra, supermercados tão parecidos, postos de gasolinas, a chuvinha intermitente... Parei exausto e atônito, numa esquina. Coloquei o meu capuz para me proteger. Levei as mãos nos bolsos e constatei que esqueci o celular. Ali na rua, a minha impressão era de que estava em algum lugar totalmente desconhecido, Pompeia ou Xangai, por exemplo. Xangai não, porque não fazia aquele calor absurdo. Vendo-me um tanto perdido, confuso, um rapaz se aproximou. Um bonito rapaz. Moreno. E notei que ele usava brincos, porque tenho memória visual. Talvez quisesse me conduzir pelo braço, mas poderiam achá-lo muito estranho. Me contentei em perguntar-lhe onde ficava aquele endereço. Ele me disse que a duas quadras e que dali mesmo eu já poderia ver o prédio. Agradeci humildemente e segui para o meu compromisso. Duas mocinhas seguiram o mesmo trajeto. O rapaz sumiu na paisagem. Vi porque ainda o olhei por detrás. Uma mocinha conversava com a outra as maiores banalidades dessa idade, os prêmios da MTV, se não me engano. Houve um momento em que uma delas quis saber da outra: “você sabia que já é primavera?”. Levei outro susto. Eu havia me esquecido completamente! E aquilo me encheu de esperança e pensei até em passar em uma floricultura e comprar uns girassóis ou violetas, gérberas cor de fogo... Margaridas. Cravos que é a flor do meu signo e do poeta Martins Fontes. Tudo menos rosas. Porque tem espinhos.

domingo, 19 de setembro de 2010

APEGO

A minha intenção não era postar nada ficcional. Não por enquanto. Sobretudo depois de "Aquele e o Outro". Aliás, muitíssimo obrigado pelos comentários. Estava me sentindo oco, mas como essa história "Apego" me veio, assim, de súbito, achei que não teria por que não postá-la. Até muda um pouco o foco do Blog, enquanto preparo outros textos menos pretensiosos. E também é bem curtinha. Um roteiro de curta-metragem, para ser bem sincero. E um pouco mórbido, já adianto, mas a mensagem é certeira, fala de apego a coisas materiais, vaidade e falsas amizades. Assunto na crista da onda. Não sei. Algo pra se pensar. A imagem linda que o ilustra é de Joannis Mihail Mouda. O texto é dedicado ao meu amigo Paulo H. Moura, por tudo que ele tem passado silenciosamente em São Paulo.


"No amigo deve vislumbrar-se o melhor inimigo. Deve ser você a glória do seu amigo, entregar-se a ele tal qual você é? Pois é por esse motivo que o manda para o inferno!" Nietzche

01 INT. QUARTO. NOITE.

Penumbra. Lindauro abre um guarda-roupa muito antigo. Quase não há nada dentro. Para um instante. Decide-se. Pega o paletó preto. Novo. Ainda no cabide, o coloca sobre si mesmo. Mira-se no espelho lateral. Namora-se. Madalena, enrolada num chale preto, vem entrando...

MADALENA

...Dona Celeste mandou pedir o paletó.

LINDAURO

...Vou usá-lo no velório. Aliás, eu já ia me trocar.

MADALENA

...Ela falou que na casa do Eliaquim não tem uma roupa que preste.

LINDAURO

...E eu com isso?

MADALENA

...A família dele é muito pobre. E vem gente da Lagoa do Morro.

LINDAURO

...Essa gente vive chorando miséria. Encomenda-se uma mortalha e pronto.

MADALENA

...Mas vocês não eram tão amigos?

LINDAURO

...Eu trabalhei muito para comprar este paletó. Só usei no casamento da Amália. (T) Olha, Madalena. Não fica tão bem em mim?

MADALENA

...Deus dá outro. Quando a gente morre, não leva nada disso.

LINDAURO

...Ah, tá bom. Então não precisa do meu paletó.

MADALENA

...Bem, recado dado.

Madalena deixa o quarto. Lindauro agarra-se ao seu paletó.

02 INT. SALA. NOITE.

Velório. Alta madrugada. A sala ainda cheia. É possível ouvir os sapos coaxando, lá fora. Dona Custódia e seu Malaquias, pais de ELIAQUIM, na cabeceira do caixão. Expressões apagadas. Muito dignos. Eleaquim, no caixão, afogado em flores miúdas. O paletó lá. Novíssimo. Contrastando com a sua pele pálida de jovem morto. Mulheres no rosário. Um cachorro distrai-se com uma mosca. Num canto, Lindauro. Inconsolável. De vez em quando, alguém se aproxima para as condolências de praxe.

ALGUÉM

...Meus sentimentos, meu filho.

Lindauro lança um olhar mortiço sobre o caixão e desaba a chorar.

ALGUÉM

...Ele descansou. Descansou.

03 INT./EXT. SALA/CEMITÉRIO. MANHÃ.

O caixão é fechado. O cortejo segue cemitério adentro. As pastorinhas entoam cânticos religiosos. O coveiro encaixa o caixão na gaveta e, depois, arremata a tampa com o cimento fresco. Alguém deposita algumas flores. Um a um, deixam o local. Lindauro é o último a sair. Ainda lança um olhar fulminante para a sepultura e, em seguida, vai embora.

04 EXT. CEMITÉRIO. CALADA DA NOITE.

Lindauro dá os últimos retoques no reboco. De vez em quando, se assegura de que não vem viva alma. Trabalho concluído. Deita fora a colher de pedreiro. Resgata o seu paletó que repousava num túmulo próximo. Sacode a poeira, veste-se e vai embora. Finalmente feliz.

FIM

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

AQUELE E O OUTRO

“Ternura não é a palavra certa, mas explica melhor essa mistura de gratidão em relação ao corpo de onde se tira o prazer, de doçura que se funde quando o prazer escorre, de lassitude física, mesmo de nojo que nos afoga e alivia, que nos afunda e nos faz vagar de tristeza enfim; e essa pobre ternura, emitida um pouco como um raio cinzento e doce, continua a alterar delicadamente os simples relacionamentos físicos entre machos”. Jean Genet

Foi tudo muito rápido. Da saída do metrô foram direto para um hotel, na rua Augusta. Hotel vagabundo, sem néon na fachada, com uma escadaria escura e dedos gordurosos pelas paredes. Queriam compensar a falta de conforto com, no mínimo, um baseado, mas só foram se lembrar deste, quando já estavam lá dentro. “Uma carreira de pó nos esgotaria imediatamente. Ou cairíamos lado a lado, nus, prisioneiros de viagens muito loucas” – pensou Aquele, o mais imaginativo. O Outro era de uma lucidez irritante. Em qualquer lugar, conversava sobre política e a penúria de viver com um salário mínimo. E recitava uns poemas muito estranhos. Ferreira Gullar talvez. Aquele não prestava atenção em nada disso, só queria acreditar que transar era mesmo muito urgente. Sempre ouvia a voz do amigo lhe incitando a essas investidas: “Você precisa dissolver a sua tristeza em sexo”. Quem sabe trocasse o analista por noites inteiras de pegação no Centro, em saunas, banheiros públicos, praças, embaixo de pontes, ou em praias, motéis, drive-ins, carros, parques, clubes, etc e etc. Seria perfeito viver assim, camuflar com gosto a própria tristeza, dizer adeus aos remédios para dormir.

Seguro da sua privacidade, o Outro foi logo tirando a roupa e se atirou desajeitado na cama. O lençol imediatamente se desprendeu e acabou por revelar um colchão velho e com um forte cheiro de mofo. Aquele ainda ficou olhando para o espaço minúsculo, feio, sem uma única gravura nas paredes, imaginando quantas pessoas já teriam passado por ali, quantos amantes não se renderam ao prazer naquele mesmo lugar, quantos homens não teriam traído suas esposas...

– Eu disse que era podrinho. Não disse? – interrompeu o Outro, com um sorriso nos lábios.

– É que eu nunca vim a um lugar como este. Me lembrou um filme chamado “A Bela da Tarde”.

– Tira logo a roupa.

Tão diferentes. Aquele morava num ótimo apartamento em Higienópolis, estudou no Rio Branco, depois Mackenzie, filho de pais rotarianos, com os dois pés na burguesia paulistana. O Outro se escondia em qualquer lugar do Centro, na São João, na Marechal, em bares ou mesmo embaixo do Minhocão. Aquele era branco, rosto suave, ligeiramente afetado e muito romântico. O Outro era mais maduro, jeitão de antigos comunistas, moreno, barba por fazer, cabelos crespos e sempre querendo mudar o mundo.

– Eu vou ao banheiro...

Não houve tempo. O Outro se aproximou cantando uma música de Chico que Aquele ainda não conhecia: “Vem meu menino vadio, vem sem mentir pra você, vem, mas vem sem fantasia, que da noite pro dia, você não vai crescer”... E Aquele nem notara o sexo do Outro já crispado, sanguíneo, exuberante. Então se apoiou no tronco forte e úmido dele e lambeu obediente as suas mãos viscosas, antes que elas libertassem vorazes os botões da sua camisa. Mas alguma coisa lhe incomodava. O Outro agora apalpava suas intimidades com força e lhe dava leves mordidas no rosto. Aquele até tentava corresponder com algum interesse, mas não conseguia se entregar totalmente.

– Só um minuto – gemeu.

– Não está gostando?...

Num impulso, Aquele se trancou no banheiro. E logo percebeu que ali também não havia nenhum luxo. Apenas azulejos muito antigos, um papel higiênico pela metade, uma pia de porcelana branca e um pequeno sabonete sobre duas toalhas de banho. O espelho oval estava manchado. Tudo muito sem graça. Pobre. Bege demais. Aquele então abriu a torneira e deixou que a água transbordasse nas suas mãos em forma de concha. “Não, não é repugnância. Talvez medo. Mas é preciso realizar o ato. Com ou sem dor. ‘Ela toca a doçura do sexo, acaricia a novidade desconhecida’. Acho que é ‘O Amante’. Agora não sei”... E banhou o próprio rosto. Da cama, o Outro quis saber se estava tudo bem.

– Sim, já estou indo – respondeu Aquele, apressado.

– “Quem bate à minha porta tem que aceitar o que ofereço”. – Afinal, você quer ou não quer? – gritou impaciente.

– Precisava me refrescar – se justificou.

Para não aborrecer o Outro, Aquele tomou logo o seu lugar na cama e se posicionou para agradá-lo. Antes, porém, lhe fez uma única exigência: apagar as luzes. E mesmo não se sentindo único, querido ou especial, se entregou sem demonstrar um laivo sequer de tristeza. O Outro então puxou para si o corpo delicado que se oferecia e, minutos depois, completamente saciado, caiu como um javali faminto que acaba de devorar uma plantação inteira de milhos. Seguiu-se um breve e incômodo silêncio, interrompido apenas quando o Outro se levantou e foi direto para o banho. Sozinho, perplexo diante do próprio abandono, Aquele fez que nada entendeu, mas estava lá, estampada em seu rosto, a sua profunda decepção. Logo ele que tinha tão viva, na memória, uma imagem de Mapplethorpe que sempre lhe causava comoção, a de um rapaz numa posição bastante vulnerável, à espera de ser penetrado ou abandonado depois de – adorava essa ambigüidade –, mas sabia que ela despertava nas pessoas mais risos, pelo ridículo da cena, do que compaixão. Aquele nunca riu daquela fotografia e a piedade que ela sempre lhe causou só não era maior da que agora sentia por si mesmo. No banheiro, uma ducha fresca deslizava agradavelmente pelo corpo do Outro, enquanto ele buscava na memória a letra inteira de “Dia Branco”. E bastava errar uma nota ou um verso da canção, para começar tudo de novo: “...Se branco ele for, esse pranto... Esse pranto?... Ou esse tanto de amor?... Se você vier, pro que der e vier, comigo...”.

Aquele, que se sentia agredido na carne e na alma, se lembrou novamente de “O Amante” e agora lhe vinha à cabeça um trecho inteiro do livro, vírgula por vírgula: “Não há sujeira, a sujeira está encoberta, tudo é levado pela torrente, pela força do desejo”. Repetia a si mesmo, na tentativa de não se arrepender do que fez. Mas não adiantou. Estava com raiva. Cansado de tanto desperdício de prazer sem ternura. Dos que se satisfazem e vão embora. De bocas estranhas, imundas, que beijam sem nenhuma paixão. De homens igualmente estranhos e imundos que, quase sempre, lhe ferem sem nada dizer. “Até quando vai ser assim, meu Deus? Até perder o gosto pelo prazer? Até não existir mais prazer?” – disse, dentro de si, cheio de revolta. E depois começou a se virar na cama tentando esmagar os próprios pensamentos e reter uma lágrima que insistia em brotar.

– Você não vai se lavar? – disse o Outro, saindo do banheiro.

A pergunta chegou Àquele atravessada, infeliz, como um desses desaforos que só machucam. “Por que não me perguntou ‘posso cuidar de você’? Lavar??? Por Deus!!! Como se eu fosse uma cueca velha. A sua cueca velha e encardida. Esse é o tipo de homem que eu recebo dentro de mim. Eu sou mesmo um idiota com i maiúsculo...” – e continuaria ainda se punindo em silêncio.

– Estou falando com você – interrompeu o Outro, confuso.

– Com licença. Vou tomar o meu banho – disse sublinhando o “meu banho”, entre seco e irônico.

O Outro não entendeu nada e nem se esforçou para fazê-lo, queria logo se espalhar na cama e dormir, dormir, dormir. Já embaixo do chuveiro, enquanto a água corria sem pressa, Aquele fechou os olhos e se imaginou dentro de uma incrível banheira, dessas de capa de revista, repleta de detergente. Odiaria, sobretudo, acordar no dia seguinte e ainda encontrar algum vestígio da baba viscosa do Outro. Do seu líquido seminal. “Me senti uma mercenária do sexo. Até elas devem receber mais carinho do que eu” – dramatizou. Enquanto isso, o Outro dormia pesado. E roncava. Alto. E era patética a sua cara de homem feliz, com a sua triste arrogância sigilosa.

Aquele até reconhecia que o caráter urgente do sexo lhe facilitava alguns equívocos amorosos, mas dividir novamente a cama com o Outro não fazia o menor sentido, ultrapassava a sua tolerância à falta de carinho e gratidão para com as pessoas. Só lhe restava então uma única alternativa: sair dali imediatamente. E, em cinco minutos, não mais do que isso, ele ganhou as ruas de São Paulo outra vez. O vento agora acariciava o seu rosto. As pessoas passeavam felizes, ao seu lado. Ele próprio esquecera que era sexta-feira à noite. Que se chamava Paulo Ribeiro de Carvalho. Que uma cama macia e dois travesseiros o aguardavam, ali perto. Um golden retriever também. E aquela sensação de alívio logo se transformou na alegria de saber-se livre do Outro. Pensou ainda em sair dançando. Ou entrar no Athenas e pedir um drinque. Ou um suco de melancia com gengibre e sem açúcar. E, em casa, agiu como se nada tivesse acontecido. Tomou um novo e demorado banho, vestiu o seu confortável pijama, entrou em seus sites de relacionamentos favoritos, consultou a agenda cultural para o final de semana, planejou almoçar com os amigos, diminuiu o ar condicionado... Sentiu-se exausto e adormeceu. E nem se lembrou de tomar o seu remédio para dormir.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

APOCALIPSE COLORIDO




Corram. Fica só até esta semana, em São Paulo, no Conjunto Nacional, a ótima Selected Works, de Keith Haring. Fui três vezes. É uma exposição compacta, mas nos apresenta muito bem esse artista norte-americano talentoso e carismático. Embora Haring não seja totalmente desconhecido nosso – ele já participou da Bienal de 83, em São Paulo, e pintou painéis em Ilhéus, na Bahia –, é a primeira vez que ganhamos uma retrospectiva de sua obra. A curadora Sharon Battat teve ainda a feliz ideia de presentear os visitantes com um livrinho charmoso chamado “The book of life”, sobre o qual falarei depois. A exposição, que já percorreu vários países, está tendo uma excelente repercussão de público e chega ao Rio, no final do mês.

Keith Haring nasceu em 1958, na Pensilvânia, e começou a desenhar muito cedo, incentivado pelo pai e inspirado em desenhos muito populares na época (lê-se Walt Disney). Mas foi em Nova York que a sua carreira de fato começou. Lá, conheceu e ficou amigo de uma série de artistas, entre eles Andy Warhol e Basquiat. Também influenciado por eles, direcionou o seu trabalho para uma pintura baseada principalmente na importância do traço. Em 1980, sua carreira ganhou um impulso inusitado e providencial. Ao desenhar em painéis publicitários cobertos por um papel preto e fosco, no metrô de Nova York, encontrou um público ávido por novidades e bastante receptivo à sua arte. Aliás, arte que iria se popularizar nas ruas de diversas cidades do mundo e faria escola, tempos depois. Nos anos 80, ganhou reconhecimento internacional e participou de várias exposições individuais e coletivas. Mesmo sob críticas, inaugurou a sua Pop Shop, no Soho, uma loja que vendia camisetas, brinquedos, pôsteres, bottons e ímãs de geladeira ilustrados com as suas imagens. Lamentavelmente, morreu de AIDS, aos 31 anos, em 1990.

Acredito que, por não haver espaço suficiente para abrigar boa parte do seu acervo, vieram para o Brasil apenas os trabalhos mais significativos, além de alguns objetos pessoais do artista que ajudam a contar um pouco a sua breve, mas inspiradora trajetória de vida. A série “Apocalypse” (1988), o primeiro trabalho feito em parceria com o escritor beat William Burroughs, é a minha favorita. Com imagens de santos ou obras renascentistas, convivendo no mesmo espaço com desenhos absurdos e irreverentes, as telas apresentam uma estética “suja”, própria da arte urbana e bastante comum nos anos 80. Outra série interessante e que agrada em cheio ao público infantil é “The story of red and blue”, com desenhos originais feitos para os filhos do galerista Hans Mayer. Para Haring, as crianças sabem uma coisa que a maioria das pessoas esqueceu: "Elas tem uma fascinação pelo seu dia a dia que é muito especial e que pode ser muito útil aos adultos se eles aprenderem a entendê-la e respeitá-la”.

Sua paleta de cores é bastante variada, com destaque para os fluorescentes que estavam em moda na época. Essas cores vibrantes preenchem traços grossos de figuras humanas, em situações engraçadas ou mesmo expressando alguma espécie de denúncia. Para descansar um pouco o olhar, mas também provocar outros sentidos, a série “The Blueprint Drawings”, bastante erótica e em preto e branco, chama atenção para aqueles loucos anos 80 de liberdade sexual e ameaçados pela AIDS. Ceifado pela doença, numa época em que não existia o coquetel de remédios que permite aos soropositivos ter mais qualidade de vida, Haring, se estivesse vivo, veria o quanto contribuiu para tornar a street art aceita pelo exigente e controverso mercado de arte. Como brinde, os visitantes podem ainda levar para casa o “Livro da vida”, ao invés de um catálogo convencional. Nele há uma breve biografia do artista, depoimentos encorajadores de soropositivos e como se prevenir da doença. Os mais animados podem ainda sair da exposição com camisinhas, distribuídas gratuitamente pelo Ministério da Saúde. Vale a pena também ir ao mezanino para ver de perto as anotações dele, as polaroids, o seu tênis Nike e assistir aos dois vídeos, um deles feito aqui no Brasil. Quem curte os anos 80, como eu, deve ficar fascinado. Tudo nos remete a essa época deliciosamente exagerada. Ah, a entrada é franca. Então, divirtam-se!