sexta-feira, 19 de novembro de 2010

ÓDIO E PRECONCEITO

Foto: A.E.

Estive ontem na Balada Literária, um evento maravilhoso organizado pelo escritor Marcelino Freire, em São Paulo, voltei pra casa cheio de novidades, feliz por ter me encontrado e conversado com a escritora Lygia Fagundes Telles e com o meu querido amigo Alcides Nogueira, louco para dividir esse momento de alegria com vocês, mas sou obrigado a deixar esses assuntos mais leves para um próximo post. Depois de assistir àquele vídeo da agressão a um jovem na Av. Paulista, no último domingo, não pude e não quero me calar. É revoltante, para dizer o mínimo! “Batemos porque ele é veado” – teria dito um dos agressores, que alegou ainda que o jovem de 23 anos o teria “paquerado”. Ainda que isso fosse verdade, não lhe dava o direito de fazer o que fez. Quem assistiu àquelas terríveis imagens viu que a agressão foi totalmente gratuita, o ódio pelo ódio. Em dezembro do ano passado, um outro débil mental, Alessandre Fernando Aleixo, de 38 anos, atacou com um taco de baseball o designer Henrique de Carvalho Pereira, de apenas 22 anos, na Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, na mesma Av. Paulista. Depois de quase um ano, em estado vegetativo, o jovem morreu no Hospital das Clínicas. O agressor teria confessado em depoimento que queria atingir o dono da livraria que é judeu. Mais uma vez, o ódio pelo ódio.

Mas, voltando a esse caso mais recente... As investigações apontam que os mesmos agressores, entre eles quatro menores, são responsáveis por mais dois ataques. A justificativa da mãe de um deles foi patética, não sei se vocês leram no jornal: “Foi uma atitude infantil. Ele sai sempre com os amigos e nunca aconteceu absolutamente nada. É um garoto que tem boas notas. Estou constrangida pela situação”. Será que ela queria que o filho chegasse em casa e ainda lhe relatasse, com requintes de crueldade, os ataques aos gays dos quais costumava participar? Tenha, sim, VERGONHA!, minha senhora. Vergonha de ter colocado no mundo o seu manancial de ódio. Eu sempre tive boas notas no colégio e nunca saí à rua para agredir ninguém. Com a mesma idade do seu filho, eu estava lendo o melhor da literatura brasileira, escrevendo e dirigindo peças de teatro, assistindo a ótimos filmes, nunca quis e nem tive tempo de ir pra rua para agredir seja lá quem for. E a que raios de atitude infantil a senhora se refere? Deixe as crianças fora dessa sujeira! Assuma que falhou como mãe, é bem mais fácil de acreditar. Espero que a Polícia de São Paulo, por quem tenho grande respeito, não deixe esses babacas sem uma boa lição. Em pensar que o artista plástico Flávio de Carvalho já andou de SAIA, pasmem agora!, na mesma Av. Paulista, em meados dos anos 50, e sequer levou uma pedrada, uma ovada, tomatada, nada disso. Alguém poderia me responder o que está acontecendo com essa juventude pra ser, assim, tão covarde e burra?

Outro assunto bem chato e que também esteve na pauta de discussões desta semana foi aquele texto assinado pelo chanceler Augustus Nicodemus Gomes Lopes, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das mais tradicionais do país, dizendo que a entidade de ensino que representa é contrária ao projeto de lei que criminaliza a homofobia no Brasil, o PL 122. Nesse manifesto, a Mackenzie sugeria que os alunos se guiassem apenas pelos preceitos da Bíblia, focando principalmente a questão da sexualidade. Legal, hein? Primeiro é aquele linchamento da garota da minissaia, na UNIBAN (lembram?), depois é a volta da Idade Média proposta pela Mackenzie. É o progresso, minha gente! Eu não vi, por exemplo, nenhum texto desse chanceler ou de qualquer outro reitor, fora Mozart Neves Ramos, propondo alguma coisa para melhorar a deficiente educação brasileira. Se os presbiterianos da Mackenzie se acham no direito de dar pitaco nas questões políticas do país – e a péssima campanha eleitoral só serviu para reforçar esse mecanismo –, por que não o fazem em assuntos que lhes dizem respeito, que fazem parte do meio acadêmico? Ou será que algum aluno da Mackenzie não sabe ainda que estuda numa universidade protestante? Por favor, Márcia Tiburi, se pronuncie a respeito. É o mínimo que esperamos de você. Nem que seja para dizer que não compactua com o pensamento do seu patrão, embora pedir as contas você não deva fazer.

Queria colocar na roda também aquele princípio de “censura” ao livro do Monteiro Lobato, “Caçadas de Pedrinho”, mas esse é outro assunto que renderia um post inteiro. Então vou parando por aqui, mas quero reforçar que: ninguém é obrigado a gostar de ninguém, mas tem o dever de respeitar. Não estou aqui para levantar bandeira nenhuma também, nem gosto disso, vocês nunca viram um post meu com esse intuito, mas, se muitas pessoas estão usando também a internet para promover o ódio, nós, pessoas sensatas, de bem, cumpridoras dos nossos deveres, temos a obrigação de repudiar isso. E, quando uma universidade como a Mackenzie se coloca contra um projeto de lei que, aprovado, só ajudaria nesse sentido, é porque nem sequer saímos do atraso. Uma pena. A minha campanha é pelo livre-arbítrio, já! Alguém vai aderir?

terça-feira, 16 de novembro de 2010

MONSIEUR PLAS




Se você assistiu ao filme Bonequinha de Luxo, deve se lembrar daquela famosa cena em que Audrey Hepburn namora as vitrines da Tiffany, na 5ª Avenida, em Nova York. Eu nem tinha assistido ao filme ainda e Audrey nem fulgurava entre as minhas musas favoritas do cinema, quando cheguei a protagonizar algo semelhante. Claro que eu não me pareço nada com a atriz (nem pretendo), nunca estive em Nova York e minha paixão nunca foram as jóias, o que realmente balançam os meus bolsos, fora livros e revistas, são os... chapéus. Isso mesmo. Quem me conhece sabe a paixão que tenho por eles. E foi namorando as vitrines da chapelaria Plas, no baixo Augusta, em janeiro de 2006, que conheci o seu proprietário, monsieur Plas, um francês de 83 anos, muito elegante e simpático, cheio de ótimas histórias

Assim que parei em frente à chapelaria, fui logo atraído por suas vitrines e comecei a desejar aqueles chapéus maravilhosos. Era uma manhã tranquila de verão e as pessoas começavam a ganhar as ruas em direção ao trabalho. As prostitutas e os bêbados, tão comuns naquela parte da Augusta, já tinham se recolhido ou se confundiam agora, trôpegos, entre os passantes. Eu é que continuava lá, olhando fixamente para tantos e variados modelos, seduzido por uma boina que me transportou imediatamente ao filme O Grande Gatsby – aquela versão cinematográfica dos anos 70, com Robert Redford, para o clássico de F. Scott Fitzgerald , por isso nem me dei conta quando a porta se abriu. Era Robert, filho de monsieur Plas, me convidando para entrar e ver de perto qualquer um deles. Fiquei realmente tentado a aceitar o convite.
Mas, depois de uma consulta rápida de preços, disse-lhe que voltaria numa outra oportunidade, que sempre estava envolvido em projetos teatrais e que, certamente, algum dia, um de meus personagens usaria um daqueles lindos chapéus. Robert então, gentilmente, me ofereceu um folheto que contava a história do seu pai. Coloquei o papel na minha mochila e saí deslizando pelo Centro. Chegando em casa, afixei o folheto à porta da minha geladeira. As pessoas sempre me perguntavam quem era o velhinho simpático da foto e eu lhes explicava muito entusiasmado a sua história, mas poucas se interessavam por ela de verdade. Por conta disso, imaginei que aquela reação era um termômetro do reconhecimento das pessoas pelo trabalho de monsieur Plas, que raras apreciavam a sua arte, mas o tempo me provaria que eu estava completamente enganado. Ainda bem.

Em agosto deste ano, abro a Folha de S. Paulo e quem está lá? Isso mesmo. O próprio. Acompanhado de seus dois filhos, Maurice e Robert. Muito sorridente, monsieur Plas estampava uma matéria sobre lugares “intocados” de São Paulo. Corri imediatamente os olhos no texto e descobri que a chapelaria existe, desde 1954, quando exibia a placa “Costureiros de Paris”. Sempre no mesmo lugar. Fugindo da Guerra Fria, nosso personagem chegou ao Brasil pelo porto de Santos, em 1951. O seu irmão, que já morava no país, descrevia o Brasil como um lugar de “muito sol e moças bonitas”. Aliás, para se proteger do sol inclemente dos trópicos, monsieur Plas aderiu aos chapéus, mas foi apenas por influência do ator Tarcísio Meira que passou a produzi-los. Chama atenção o fato dele se orgulhar de nunca ter feito uma liquidação: “Quando você trabalha com arte, acho errado liquidar o que faz”.

Há pelo menos uns dez anos, a chapelaria Plas vem recebendo um público mais jovem, mas a sua clientela é também bastante variada, com destaque para personalidades da música como Edgard Scandurra, Ed Motta, Cauby Peixoto, Nando Reis e até a cantora australiana Kylie Minogue. “Veio aqui uma loirinha bonitinha, simpática. Depois fiquei sabendo que era ela” – deixa escapar o modesto Robert. A modelo Gisele Bündchen também já esteve lá fotografando com Bob Wolfenson e o presidente Lula foi votar, nas últimas eleições, com o seu panamá importado pela chapelaria.

A história de monsieur Plas se confunde com a de muitos outros imigrantes que vieram para o Brasil trabalhar com moda – Estevão Brett, Moises Frajhot, Rudy Davidson, David Liberman, entre outros –, mas com um diferencial, ele não sucumbiu aos modismos e tampouco aos caprichos do mercado – mesmo em momentos de crise – e também nunca esqueceu o passado, seja no modo impecável de se vestir ou na sua rara filosofia que dialoga tão bem com aquele pensamento de Godard: não existe resistência sem memória. E não faz muito tempo que retornei à sua chapelaria, para uma rápida visita. Ele estava concentrado no seu livro de yoga, o jornal repousando ao lado. Queria lhe perguntar se tinha assistido à Alice, o que achava do Chapeleiro Maluco. Não trocamos palavra. Mas também não foi dessa vez que eu compraria o meu tão sonhado chapéu, assinado pelo elegante monsieur Plas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

AO CAIO, COM CARINHO


Pouco antes de morrer, em 1996, alguns amigos presentearam o escritor Caio Fernando Abreu com um computador portátil. Ele ficou fascinado com o presente – uma novidade na época –, mas talvez não imaginasse que, tempos depois, a sua obra seria amplamente divulgada ali. Muitos textos do escritor se multiplicam, todos os dias, nas principais redes sociais e blogs, numa velocidade estonteante. Fenômeno parecido, guardada as devidas proporções, só mesmo o da escritora Clarice Lispector, por quem Caio nunca escondeu ser bastante influenciado. Ela o chamava de “nosso Quixote”, numa referência à sua indisfarçável magreza. Informações como esta estão no livro “Para Sempre Teu, Caio F.”, da jornalista Paula Dip, uma das grandes amigas dele e para quem ele dedicou um dos contos do livro “Morangos Mofados” (1982). Embora seja uma “biografia afetiva”, um testemunho da amizade dos dois, é a primeira vez que se revela a intimidade do escritor dessa maneira. E só por isso já valeria a pena.

O prefácio é assinado pela escritora e dramaturga Maria Adelaide Amaral, que conheceu Caio no final dos anos 70. Ela ganhou dele o apelido de “Levinha” e ele, possivelmente, a teria inspirado o provocante Beny, de “Aos Meus Amigos” (1992). Maria Adelaide relembra os melhores momentos da amizade dos dois e reproduz um trecho de uma carta de Caio que ela nunca esqueceu. Depois de assistir, aos prantos, a peça “De Braços Abertos” (1984), da dramaturga, ele lhe escreveu comovido: “O que acontece comigo é que eu tinha andado de braços fechados. Sem perceber”. Em outro parágrafo da carta, que lamentavelmente não consta da biografia, ele desabafa: “Dá vontade de amar. De amar de um jeito ‘certo’, que a gente não tem a menor ideia de qual poderia ser, se é que existe um”. Esse tom melancólico, tão comum aos textos do escritor, aparece também na narrativa de Paula Dip. A impressão é de que por trás de cada capítulo existem também algumas lágrimas: de saudade do Caio, evidentemente, mas também do apagar das luzes do século 20, daqueles anos “loucos”, “perdidos”, de intensa agitação.

Caio e Paula Dip se conheceram, às vésperas dos anos 80, em redações de revistas e, até a morte precoce do escritor, quase vinte anos depois, nunca se afastaram. Quando a presença se tornava impossível, entrava em cena uma troca afetuosa de cartas. Essa correspondência é o ponto alto do livro, traz gírias da época (algumas criadas pelo próprio escritor), indicações de músicas, citações literárias, referências à Astrologia (Caio era um exímio conhecedor do assunto), roteiros de viagem e, principalmente, muito humor. Antes de refazer a trajetória do amigo, a jornalista recorreu à irmã dele, Cláudia Abreu, que lhe abriu “a casa e o coração” e permitiu que ela tivesse acesso a recordações que só a família possui. Entrevistou também os muitos amigos e colegas de Caio, revirou o seu baú particular, reconstruiu a época com recortes de jornais e revistas e ainda contou um pouco da sua própria história. O resultado não poderia ser melhor: um texto leve, preciso, inconfundível na sua abordagem pop e com tudo para agradar à crescente legião de fãs do escritor.

Caio F. (como assinava aquelas cartas) nasceu na cidade de Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 1948. Ainda jovem se transferiu para Porto Alegre e, lá, publicou seus primeiros contos. Assim como Fernando Pessoa, também ingressou, mas não concluiu o curso de Letras. Trabalhou como jornalista em importantes veículos de comunicação, mas estava sempre em dificuldades financeiras e nunca teve pouso certo. Em 1973, cansado do clima repressor no Brasil, foi para a Europa e só retornou depois de um ano. De volta ao país, se estabeleceu mais ou menos em São Paulo, cidade com quem mantinha uma relação de amor e ódio. Depois de uma breve temporada na França, em 1994, quando viu despontar sua carreira internacional, retornou a Porto Alegre, mas dessa vez já estava debilitado pela AIDS, doença que o venceria no dia 25 de fevereiro de 1996. Deixou uma obra repleta de personagens marcados pela paixão e que fazem sucesso até hoje.

A escritora paulistana Márcia Denser acredita que a morte prematura dele, aos 47 anos, o privou de transcender a questão do gênero, na sua ficção. É inevitável que esse tipo de questionamento não esbarre na inútil discussão sobre a existência de uma literatura gay que o aprisione. Difícil prever também os novos rumos da ficção de um escritor como ele, não só pela sua personalidade moldada a “Cântico negro”, de quem só ia aonde lhe levavam os seus próprios passos, mas também porque Caio era o seu texto, no sentido cartesiano da palavra, como defende o editor Pedro Paulo de Sena Madureira. É preciso ler a biografia para não confundir o escritor – incansavelmente comprometido com a sua literatura de cunho universal – com o personagem Caio F., debochado, que usava expressões como “de salto alto e decote profundo”, atento a banalidades, ferino, etc. O que fica para a posteridade é somente o escritor. E como ele não vai voltar, cabe agora aos seus leitores atender a um de seus desejos mais recorrentes: amá-lo por alguma coisa que escreveu.

Resenha e ilustração para o site Aplauso Brasil - IG