sexta-feira, 19 de outubro de 2007

ESCAPISMO URGENTE


Vocês devem achar que eu pirei de vez ou estou tentando emplacar uma capa da I-D (o que não seria má idéia rs), mas a verdade é que estou lhes sugerindo um pouco mais de escapismo. Sim, precisamos dele. Depois de voltar pra casa, fui surpreendido com uma série de mudanças, próprias e alheias, falta de trabalho, decepções com amigos e outras cositas más. Pintar tornou-se uma espécie de refúgio, um alento de cores e sensações. Porém, depois de pintar os meus quadros, fiquei com um vazio enorme. Melancólico. Como se precisasse começar outro imediatamente. Como se aquele filho estivesse entregue ao mundo e não houvesse mais nada o que fazer. Ficaria ele, na parede, imóvel, para ser contemplado ou odiado, mas a sua missão de existir já estava cumprida. Desde criança, sempre gostei de desenhar e pintar. Até hoje tenho um desenho de quando tinha uns seis ou sete anos. Lembro-me nitidamente de rabiscar todo tipo de papel que entrava em minha casa. Nem as paredes escapavam. Ali, naquele desenho, podia viver o que a realidade não me permitia. Não tinha preconceito de cores e formas. Tudo obedecia exclusivamente à minha imaginação. E numa Bahia romântica, cheia de referências populares, saía do papel casais de caipirinhas (calma, não tem nada a ver com a bebida, mas com um casal em trajes junino rs), casas cercadas de flores em colinas distantes, etc. Depois vieram as pedras pintadas e os bonecos de barro. Em nossa ampla casa da Góes Calmon, o quintal tinha um barro argiloso, vermelho, que usávamos para moldar também nossos sonhos, numa época em que os brinquedos eram muito distantes e somente podíamos contemplá-los na TV em preto e branco, nos intervalos do programa da Xuxa. Nunca reclamei de nada disso, de não ter tido brinquedos na infância, mas há, sim, uma ponta de tristeza. O último dos filhos a ser batizado, e isso só aconteceria no final da minha primeira infância, sempre ficava com os brinquedos que já não serviam aos meus outros irmãos maiores e devidamente apadrinhados. Tempos difíceis aqueles. Talvez venha daí a minha aproximação com as artes, de um gesto de solidariedade delas para comigo. Já que não tinha brinquedos, então que inventasse os meus próprios. A imaginação sempre fértil. Latente em mim. Outra lembrança dessa época me ocorre agora. Uma vez meu pai jogou um ventilador quebrado fora. Eu e meus irmãos o desmontamos e fizemos coisas inimagináveis. Corria o ano de 1984 ou 1985. Não lembro exatamente em detalhes tudo que saiu daquela geringonça, mas eu, por exemplo, fiz um cachorro com a base do ventilador. “Perdeste o melhor amigo. / (...) Mas tens um cão”. Grande Drummond. Havia também na cidade, minúscula, um rapaz chamado Jairo que fazia grafite em muros. Minha mãe me prometia constantemente que esse rapaz pintaria um Snoop em um tecido qualquer e uma costureira se encarregaria de costurá-lo pra mim. Teria então o que anteciparia o meu único urso de pelúcia, um Petute muito em voga nos anos 80, com sua gravatinha de borboleta, olhos lustrosos e pêlos bicolores (marrom escuro e claro). Presente da minha futura madrinha. “Quem tem padrinho não morre pagão” – filosofava Nete, a mocinha que ajudava em nossa casa. Na mudança para São Paulo, esse urso se perdeu ou foi parar em outro lar. Nunca mais nos vimos. Às vezes, paro no meu quarto/estúdio e vejo o quanto amadureci “artisticamente”. As formas dos meus desenhos que eram tão genuínas, libertas, hoje são polidas e acompanham as tendências da arte pelo mundo. A perda da inocência. Em 1993, conheci Frida e dava início a minha fase vermelha. Sangüínea. Fiquei encantado com a sua história e, principalmente, com a sua pintura visceral. Paixão que seria levada aos palcos, dez anos depois, na faculdade. Lembro-me agora das palavras que encerravam o espetáculo: “Sonhos, sonhos, sonhos. Vou morrer de sonhos”. Disse-nos ela, no alto de sua dor. A dor que hoje também sinto, na minha recente fase azul. É isso, pessoal. A minha temporada das cores está só começando. E a sua?

terça-feira, 18 de setembro de 2007

DORMINDO

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

IMPRESSÕES AVULSAS

MÔNICA VELOSO COMENDO PIZZA NA PLAYBOY

Tive uma idéia superbacana para o aguardado ensaio fotográfico da Mônica Veloso, na revista Playboy. Ela deveria aparecer na última página comendo uma “inocente” pizza. Pensei até numa foto em PB, tipo aquela da Madonna do livro Sex. Já que, quando se trata de corrupção neste país, tudo termina em pizza mesmo, seria uma forma de reafirmar o óbvio ululante (inevitável o trocadilho com o molusco presidencial). E, cá entre nós, seria uma jogada de marketing e tanto!

ENTRE LIVROS

Recentemente passei por uma fase bem complicada e ler foi uma espécie de “descanso na loucura”. Começo indicando “Werther”, de Goethe, que eu já havia lido na faculdade, mas que nesta releitura vi coisas incríveis como a fluência extraordinária do texto, algo bem atípico em livros românticos. Há trechos saborosos como este: “Por que é que aquilo que faz a felicidade do homem acaba sendo, igualmente, a fonte de suas desgraças?”. “Duas Ou Três Coisas Que Sei Dela, A Vida”, do Domingos Oliveira, é um livro excelente para quem busca algumas respostas da vida, mas não tem idade suficiente para entendê-la (o meu caso) ou não quer ficar enchendo o saco dos pais ou amigos mais velhos perguntando sobre ela (o meu caso também). E o melhor de tudo: não é auto-ajuda. Quando assistia o programa dele no Canal Brasil, ele não me inspirava o menor dos adjetivos, mas agora tenho vontade de conhecer a fundo tudo que ele já fez. Virei fã mesmo. “Solo de Clarineta – Vol 2”, do Erico Verissimo, não chega a ser tão bom quanto o Vol 1, que li no último verão, mas está repleto de boas dicas de viagem para quem deseja conhecer a Grécia, Portugal e Espanha. Reli também “Laços de família”, da Clarice Lispector, acompanhado de um roteiro de leitura, que fez toda diferença na hora de entender alguns contos. Os que mais me impressionaram foram “O Crime do Professor de Matemática” e “O Búfalo”. Do livro “A Rosa do Povo”, de Carlos Drummond de Andrade, li e reli diversas vezes “Consolo na Praia”. Não há um só verso com o qual eu não me identifique ou que não tenha alguma relação com a minha mudança de vida recente. Numa tarde cor de aço, coração opresso, me sentei nas pedras da Ponta da Praia, em Santos, sem me dar conta de que inconscientemente estava protagonizando aquele poema. Um desses raros momentos de beleza triste de nossas vidas. Outro livro que gostei bastante foi “Uma escola para a vida”, de Muriel Spark, escritora escocesa que possui uma sensibilidade incrível. A história do jovem Chris (às voltas com o seu primeiro romance) e do frustrado professor Rowland Mahler (que não consegue terminar o seu) é repleta daquele humor que os anglo-saxões são mestres. Lembra muito Nick Hornby e Sue Townsend. O final surpreende. Comecei também a ler “Neve”, de Orhan Pamuk, o incensado escritor turco ganhador do Prêmio Nobel de Literatura do ano passado. Indicação da minha amiga Fernanda, que tem livros ótimos e que espero ler todos um dia (risos). Há uma frase nele que curti bastante e que tem tudo pra se tornar uma das minhas favoritas: “Se alguém passa muito tempo se sentindo feliz, se torna banal”. Bem, por ora é só.

DOIS CÔMODOS AJEITADINHOS

E o último CD (duplo) da Ana Carolina, hein? Impossível não ouvi-los sem sentir a mesma estranheza de quem lê pela primeira vez “Deus (Revelação Magnética)”, de Alan Poe. Afeito aos diminutivos, comecei pelo “Quartinho”. Não sei por que razão me veio à cabeça a imagem de um quartinho de empregada (e de minha parte não há nada de pejorativo nisso), onde, longe dos olhos dos patrões, o pequeno cômodo serve de cenário a toda sorte de jogos eróticos (e a partir daqui a imaginação é por sua conta). Gostei bastante de “Então Vá Se Perder”, “Carvão”, “Manha”, “Corredores”, “Eu Não Paro” e “Claridade”. Sim, sou um cara romântico e gosto de músicas piegas. Li recentemente que os trabalhos anteriores dela são melhores. Concordo em parte. Só pela coragem de ter lançado um CD (duplo) com músicas inéditas ela já merece quinze minutos de aplauso. As malditas regravações parecem não ter fim neste país, meu Deus! O que houve com os compositores brasileiros? Greve? Bloqueio criativo?... Mas, voltando, o CD não foge a fórmulas já consagradas como as baladas que sempre viram temas de novela, mas também há lá seus experimentos, o que eu acho extremamente positivo. “Quarto” é mais sofisticado, mais dançante, mas também tem o seu quê de “despudor”. Por falar nisso, fico ruborizado de cantar algumas músicas (de ambos os CDs) em público ou mesmo deixar que a minha mãe as ouça na minha presença. Longe de qualquer moralismo, mas ficaria muito constrangido de ouvi-la cantando, por exemplo,... Bom, deixa pra lá.

A PONTE E O ABRAÇO

A intenção era ser um suicídio simples, honesto, silencioso. Ninguém saberia da minha morte e eu não faria questão nenhuma de anunciá-la. Qualquer indulgência, principalmente a última, seria muito humilhante. E depois uma morte-anunciada presume uma não-morte. O fato é que eu queria mesmo morrer e com o mínimo de dignidade. Havia motivos. Alguns muito aparentes e outros tantos ocultos em uma vida cheia de fracassos. Então por que continuar a não dar em nada? A não ir a lugar nenhum? Na verdade, eu haveria, sim, de chegar a algum lugar, para o bem ou para o mal. Acabaria o grande mistério. O grande temor. “Erguer a cortina e passar para o outro lado, eis tudo”.
Antes de sair de casa, ainda relanceei os olhos na direção dos móveis, livros, das flores murchas sobre a mesa, da cama ainda desfeita e, lá fora, do que restou do jardim. Tudo já morto. Tranquei a porta. Pacientemente. Confesso que a única coisa material que temi deixar para trás foi aquela porta. Gosto tanto de portas e janelas. Abertas ou fechadas elas são sempre essenciais. Eu nunca fui essencial. Depois de atravessar a rua, segui para a Ponte da Saudade. Era irônico morrer logo ali, num lugar tão óbvio, mas não havia outro melhor num raio de cinco quilômetros, o máximo que o meu corpo suportava caminhar. O caminho era de chão batido. Toda vez que algum carro passava, deixava aquele rastro vermelho e serpenteado na estrada. De vez em quando eu parava e enchia os bolsos com pequenas pedras. Uma tosse aqui e outra ali. De volta à minha marcha, estranhei a minha mudeza de pensamentos. Melhor assim. Oco.
A ponte já estava dando na vista. O sol indo embora. Eu indo embora. Precisei me certificar de que não vinha nenhum carro, nenhum tropeiro ou vivalma. Agora já estava muito perto de me expulsar do mundo, longe dos olhares piedosos daqueles que me cercavam com negligência. Com o coração repleto de um não querer viver, cheguei à beira do imenso vão que circundava a ponte. Cairia em queda livre e o meu corpo tocaria o rio lá embaixo, sem grande esforço. Houve tempo apenas para o sinal da cruz. De repente, surge uma voz melodiosa atrás de mim: “Com a sua licença. Posso lhe pedir um favor?”. Muito sério, voltei meu corpo em direção àquela criatura que aparecera não sei como, vinda não sei de onde. Ainda esfreguei bem os olhos para ter certeza do que via. O ser era baixote e com uma cara muito descorada, olhos de um verde quase transparente, os cabelos alourados e a pele muito alva como a de um anjo. Trajava uma roupa muito simples de algodão e uma mochila nas costas dava-lhe um ar irresponsável de viajante. Um menino na idade. Meio desconfiado, fui logo lhe pedindo para ser breve.
- Não faça cerimônia porque tenho pressa. Antes me diga apenas uma coisa, você vem de onde? Ainda agorinha olhei pra tudo quanto é canto e não vi sombra.
- Acabo de chegar da cidade, já andei bem umas duas léguas.
- Procurando trabalho?
- Não senhor.
- O que quer da minha pessoa?
- Um abraço.
Quando ele me disse aquilo, assim, numa golfada, tive ganas de mostrar-lhe as minhas forças, mas me contive porque não se bate em doente de cabeça. Idéias do meu pai, seu Sebastião, que Deus mantenha embaixo de glória.
- O amarelo tá brincando comigo? Que história mais besta é essa de abraço? – rebati.
- Abraço é tão bom.
- Eu não sou desses por aí não, viu? Honro muito as minhas vestes.
- Nem pensei...
- É bom mesmo, porque senão iríamos rolar os dois por este chão e só eu haveria de me levantar vivo.
E ainda havia a desagradável sensação de estranheza ao vê-lo ali a suplicar-me um mísero abraço. Um encontro gratuito de corpos, mas que desnudaria a minha fragilidade para o mundo inteiro. “O rei está nu”. Quando, enfim, nos enlaçássemos, talvez a grandeza do meu espírito se restituísse ou então, consciente de que era inútil ser salvo, eu continuasse a me abandonar para sempre. Querendo fugir do meu compromisso, tentei investigar de onde vinha aquela querência por um abraço, mas nenhuma de suas respostas me foi satisfatória.
- Não lhe conheço. Não é meu parente. Não é criança – neguei três vezes.
- E tem idade certa, grau de parentesco ou precisa ser criança para receber um abraço? – ele me contradisse automaticamente.
- É melhor você não insistir, porque estou ficando nervoso.
Diante das minhas negativas freqüentes, o sujeitinho decidiu seguir a sua viagem. Eu é que já tinha me apegado a ele. E reparando nos meus bolsos cheios de pedras, ele achou que eu colecionasse os pequenos seixos. Aquela sua ingenuidade vulgar é que o confundia com um desses muitos sonhadores de estrada. Confesso que ainda lhe disse qualquer coisa de atravessado, no que uma grande culpa logo se desenvolveu dentro de mim. Resolvi então pôr termo naquele sofrimento, apalavrando o tal abraço, mas que ele não se aproveitasse além do permitido. Sorte houve que ninguém passou por aquele caminho, naquela hora e mais meia. A noite também já se achegara.
- Não serve um aperto de mão? – ainda perguntei.
- Não senhor. Apertos de mão são cumprimentos involuntários e abraços são atos de generosidade. Se o senhor acha que eu não mereço...
Não havia mais tempo de voltar atrás. O abraço foi dado e eis o milagre. Perdoem-me a traição da minha memória, mas lembro-me apenas dos meus olhos se rendendo às lágrimas, um arfar de peito e um sorriso franco e largo desenfreando-se na minha boca. Ainda pude ver, enquanto caí estendido no chão, um pequeno halo de luz suave que inquietou os meus olhos e de repente sumiu. Mais nada. Quando tornei a mim, olhei em volta procurando o ser baixote, mas ele já havia desaparecido. E só então compreendi que eu estava nascendo de novo.

domingo, 26 de agosto de 2007

INILUDÍVEL SOLIDÃO

Não é que fossemos amigos. Não. Nem chegamos perto de tanta felicidade. Era um desses colegas de classe que gostam de arrancar risadas a qualquer momento. Se trocamos duas ou três palavras durante todo o colegial foi muito. Há pessoas que são assim, não precisam participar diretamente de nossas vidas ou fazer grandes coisas para se tornarem inesquecíveis. São pessoas que já nasceram predestinadas a estar no mundo. Consigo me lembrar de algumas delas que, num determinado momento de minha vida, nos cruzamos e tivemos muito pouco ou nada a dizer. Recordo-me agora de um rapaz que me viu num ônibus a caminho da faculdade, há um bom tempo. Dias ou meses depois, ele me disse à queima roupa num restaurante: “Você ainda vai estar na televisão”. Nunca mais nos vimos. Também não vi o surfista que ao sair do mar debaixo de um temporal me dirigiu palavras incompreensíveis, mas que nunca consegui esquecer. E a moça educada que me apresentou o computador, pela primeira vez, em 1997, na exposição de Monet, no Masp? Tantos outros fragmentos de presenças ou presenças inteiras que não somem da minha memória. Logo que o vi na feira-livre, na barraca de pastéis, foi como se todo um período gostoso da minha vida estivesse de volta. A Jacirene com o seu jeito tão espontâneo e feliz. O Wender tão dispersivo dormindo na carteira ao lado. O Vitor com o seu olhar de cão desamparado. A Fernanda consultando a sua tabela de combinação de roupas. A Graciete representando num vestido azul-piscina Aurélia (“Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela”). O César tão habilidoso com os artesanatos da festa do folclore. A sensibilidade da Lucélia contrastando com os seus ombros largos. A Fabiana sempre nervosa, mas indulgente, às voltas com os problemas de sua casa. O Santiago e o seu cavaquinho. O Gilmar com as suas inseparáveis revistas de nu feminino. A Rafaela com o seu ar naturalmente esnobe e, por fim, o Alessandro que eu revejo agora, dez anos depois. O mesmo porte atlético, as mesmas pernas fortes de jogador de futebol, os cabelos loiros, o mesmo rosto com um irrefletido ar de cansaço. O capacete na mão denuncia que ele continua gostando de velocidade. O que teria feito de sua vida até aqui? Casado? Com filhos? Quem sabe. Ensaiei me aproximar. Hesito. A minha timidez ainda vai me levar à ruína. Espero ele terminar o seu lanche. Fico afastado registrando aqueles últimos momentos de silêncio. Penso em me fazer notar. Talvez valesse a pena. Poderíamos conversar um pouco, falar de ociosidades ou sobre qualquer coisa que estivesse nos jornais. Não haveríamos de fugir àqueles tempos tão cheios de vida e sorrisos francos. Lembraríamos da peça “Filhos da Rua”, a nossa epopéia dramatúrgica no Marcílio Dias. Tão real quando ele apanhou a Graciete em seus braços, violentamente, simulando um policial mau caráter prestes a violentar a menina de rua. A comoção em cena aberta. A classe vestida de negro, no último ato, trazendo nas mãos os candelabros de garrafas pet com velas acesas e cantando à capela a música que dava título ao espetáculo. Era a primeira vez que um texto meu era encenado com apuro, ainda que fôssemos todos muito amadores. É tão diferente ser amador. Tão bom não se prender a regras e convencionalismos. Não escrever à moda de. Ao mesmo tempo a vontade de começar, de dar a cara à tapa, só para ver a reação do público. E, depois de deixar a barraca de pastéis, o segui. Não foi muito longe. Ele atravessou a avenida e foi ter com um vendedor de motos usadas, já na Feira do Rolo, na outra extremidade. Havia pouco movimento àquela hora da manhã. Pude ainda perceber o seu interesse nas motos pela forma como se detinha nelas. Examinava com um olhar apurado aquelas máquinas tão generosas e violentas. Num raro impulso, cheguei mais perto. Ele de costas. De vez em quando, fazia um meneio de cabeça. Voltava o corpo na outra direção. O sol muito forte. Não havia mais o que fazer. Deixei que nos perdêssemos novamente e voltei pelo caminho da minha iniludível solidão.

TOMANDO O PULSO


Pouco o que falar no vazio de esperança que se resumiram aqueles dias.
Apenas o protesto (o último) com letras firmes, cheias de ressentimentos.
E o bater atrasado do próprio coração para se lembrar de que ainda vive.

COMO NÃO ESCREVER POEMAS

SEGUNDA-FEIRA. Acordei com vontade de escrever um poema. Quem sabe um lindo poema de amor com direito a todas aquelas coisas ridículas a que os apaixonados se permitem confessar. Faltou o principal: o ser apaixonado.
TERÇA-FEIRA. A obsessiva vontade de escrever um poema começa a me tirar o sono. Passei a madrugada inteira na tentativa e erro. Deu erro de goleada. A folha de papel permaneceu em branco, mas fiz questão de picá-la em mil pedaços.
QUARTA-FEIRA. Chego à conclusão de que escrever poemas não deve ser mais difícil que ir à Lua. Mas também isso não acrescentou uma única palavra numa outra folha em branco que deixei sobre a mesa. Começo a pensar que o problema talvez esteja na cor da folha.
QUINTA-FEIRA. Estou quase desconsiderando a conclusão do dia anterior (somente no que se refere à dificuldade em escrever poemas). Desconfio que poetas são seres divinais. Tornou-se rotina triturar folhas de papéis. Até o envelope cor de
laranja foi guilhotinado.
SEXTA-FEIRA. O dia mais irresponsável da semana me afasta momentaneamente da possibilidade de escrever meu único poema. Tomei algumas batidas de frutas para desinibir meus pensamentos. Vomitei todo o meu quarto.
SÁBADO. Dor de cabeça. Recuso o futebol e não me acostumo à idéia de que escrever poemas está me deixando quase louco. Mas ainda não é hora de jogar a toalha. Um sábado à noite pode ser inspirador.
DOMINGO. Nada como um dia para não fazer nada. E não fazer nada inclui sobretudo não pensar em escrever malditos poemas, romances, roteiros, resenhas, ensaios, crônicas, cartas, e-mails, bilhetes...

HISTÓRIAS DE QUINTAL

Eu tinha três pares de anos, não mais do que isso. Lembro-me com precisão. Era a primeira vez que recebíamos uma visita mais longa em nossa casa. “Uma tia distante de São Paulo” – nos informou nossa mãe. Falou com aquele jeito prático que só ela tem. Fomos então brincar no quintal, com a sensação de que ali havia dente de coelho. Falavam baixo como se escondessem uma calamidade. Não houve tempo para grandes investigações. A tia distante de São Paulo, que eu notaria anos depois ser muito parecida com a poetisa Cora Coralina, já havia chegado. Depois das apresentações formais, ficamos à espera de algum presente. Ela não trazia nenhum brinquedo, nenhum chocolate, nada daquelas coisas que as crianças tanto gostam e sonham ganhar. Apenas a sua presença miúda, a sua voz cansada, quase gemida, que às vezes pareço ouvir no escuro. Um dos quartos sem janela lhe foi reservado. Ordens foram dadas para não entrarmos mais lá. Não queria perder o momento tão esperado de abertura da mala. Fiquei à porta observando curioso para saber o que sairia de lá. Havia ainda uma esperança. A última. Quem sabe nossa mãe pudesse ganhar um par de brincos. Ou um corte de tecido. Ou sapatos novos. Ela sentou-se na cama, o olhar secreto, as mãos vacilantes ao libertar da mala as botas negras de cano alto, as roupas de festa, as pequenas jóias e o que mais me chamou atenção, uma linda boneca. A tia distante de São Paulo já era velhinha e na minha imaginação perturbadora era inadmissível que ela ainda brincasse de bonecas. Uma boneca limpinha, ornada com o seu vestido branco de rendas e no seu rosto redondo uns olhos muito azuis. Fez um carinho na boneca e a deixou de lado. Nossa mãe me confidenciou recentemente que a tia distante de São Paulo tinha “problemas de cabeça”. Naquele tempo, não se ousava dizer certas palavras, principalmente doenças. O simples fato de pronunciá-las era motivo de muita temeridade ou para os mais supersticiosos, de muita desgraça. Tempos de muito silêncio. Soube também que ela foi abandonada em nossa casa, porque não dera certo na vida. Quanta maldade privá-la de estar onde ela realmente se sentia bem, na cidade grande. Éramos uma família remediada que gozava de boa paz financeira, mas nem todo conforto do mundo poderia proporcionar a ela a tranqüilidade de espírito de que precisava. Nunca presenciamos um ataque de fúria da sua parte. Na verdade, ela nunca demonstrou ausência completa ou parcial de sua lucidez. Aparentemente era uma pessoa normal. Apenas contava algumas histórias mirabolantes, o que não vejo nada de errado. Gostava também de pintar as maçãs do rosto com um acentuado carmim. A boca sempre muito vermelha. Cabelos curtos penteados para trás, sobressaindo os brincos de pressão. Uma figura pictórica saída de um quadro de Toulousse Lautrec. O tempo passou e a tia distante de São Paulo ganhou um novo destino, a casa de um de seus irmãos, num sítio muito humilde e distante da cidade. Os dias que antecederam a sua partida foram os mais lúgubres que já presenciei. O clima em nossa casa tornou-se pesado e não houve uma só pessoa que não aspirasse aquela tristeza. Como se sentisse a violência que se aproximava, ela foi ficando cada vez pior. Sem dúvida, começava ali o seu calvário. Inventaram mil histórias para convencê-la a entrar no carro. Eu estava na rua vendo tudo. Era uma manhã de sol calmo. Impassível na minha ingenuidade de criança, mas, por dentro, muito indignado. A tia distante de São Paulo não quis entrar no automóvel, resistiu com certa moderação, mas resistiu. As malas já estavam lá dentro. Teriam colocado a boneca de olhos azuis? Nunca soube. Não houve um erguer de voz. Gestos expansivos. Nada. Muito silenciosamente ela se deixou conduzir até o seu lugar no interior do carro. Não sem antes chamar pelo meu nome. Uma súplica. Cravando ainda em mim aqueles seus olhos misteriosos. Nunca os esqueci. E partiu. A tia distante de São Paulo só voltaria a nossa casa, poucos meses depois. Quando, enfim, morreu.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

SERÁ QUE CONSEGUIMOS?


"É preciso amá-la (a Pátria) gloriosa ou obscura, próspera ou desgraçada".
Lygia Fagundes Telles – "As Meninas (1975)".

SÁBADO DIFERENTE

Sábado de sol. Dia muito agradável para uma caminhada na Av. Paulista. Sinto-me estranhamente feliz. No vão do MASP, muitos policiais reunidos. Talvez centenas. Desde a invasão do Carandiru, nada parecido. Faço várias conjecturas. Chego a pensar num ataque terrorista, como já havia sonhado na noite anterior, mas sigo em frente. Do outro lado da avenida, vejo uma pequena concentração de jovens, vestidos de preto e com caras pintadas (de novo?), se preparando para uma manifestação contra o atual governo petista. Não imaginava que aquela meia dúzia de gatos pingados fosse se multiplicar tão rápido. Um trio elétrico servia de palco aos organizadores do "evento", que, segundo os próprios, não tinham ligação com nenhum partido ou ONG. Tudo muito improvisado, mas, no meu entender, completamente legítimo. Viva a democracia. Começo a me entusiasmar com as frases de efeito, a criatividade dos cartazes, as fantasias de alguns deles, como a de um simpático velhinho vestido de anjo. Não resisti e fiz várias fotos (as melhores que já fiz até hoje). Ganhei até um nariz de palhaço para também ficar a caráter. O ponto alto foi o desabafo comovido de alguns parentes de vítimas do acidente com o avião da TAM. Tinha de tudo, menos o povo. Não consigo imaginar que os problemas do país afetam apenas a classe média. Será que os pobres não pagam impostos abusivos? Não são mal atendidos nos postos de saúde? Por acaso, a educação neste país é um orgulho nacional?... Já passou da hora das pessoas acordarem. Mas prefiro imaginar que nunca é tarde. No final da passeata, uma ponta de tristeza. Um tom drummondiano. Melancólico. Os versos de "Consolo Na Praia" pulsando dentro de mim: "Murmuraste um protesto tímido. / Mas virão outros".

PROTESTO TÍMIDO

BLOQUEIO

Clara era uma jovem escritora com muitas pretensões. Estava se firmando no escorregadio mercado editorial brasileiro. Conseguiu publicar o seu primeiro romance e de quebra ainda leu duas ou três resenhas sobre o mesmo, em jornais importantes, de grande circulação. A editora entusiasmou-se. Clara ficou orgulhosa de si mesma, apesar de pouco remunerada. Olhou para as contas sobre a mesa. Procurou inventar consolos que a deixassem mais tranqüila ou alimentasse a sua vaidade: "Eu não sou a J. K. Rowling. Nunca pretendi ser". Dias depois, um pouco alarmada, recebeu a notícia de que estava com um bloqueio.
– Bloqueio?
– Exatamente. É normal. Todo escritor já passou por isso. Sabe aquela luta contra uma folha em branco?
– O senhor escolhe tão bem as palavras, mas a minha luta é comigo mesma. Eu sei. Eu estou obstinada para escrever um grande romance, mas sequer consigo ter uma idéia de que me orgulhe. Nem umazinha. Nada. Eu sou a própria folha em branco, isso sim.
– Você deve estar exausta de extrair de si mesma sempre novas histórias. Tire umas férias. Conheça novas pessoas. Novas emoções vão ser úteis para o seu próximo trabalho. Você é tão jovem...
– E tão imatura, tão sem assunto, tão sem graça. Uma fraude! Não é isso que o senhor ia me dizer? Passar bem.
Clara pensou em chorar, mas achou-se ridícula chorando ali na rua, por causa de um bloqueio criativo. Talvez fosse melhor se desabafar com alguma amiga. Mas que amigos? Os poucos que cambaleavam no seu círculo de amizades não suportavam literatura. Ainda assim tentou a sorte. Quem sabe Catarina, a única que conseguiu concluir o ensino médio, pudesse lançar um ponto de luz naquela sua escuridão sem fim. Terminou ouvindo um conselho nada animador.
– Por que você não deixa para sofrer, no domingo à noite, quando já é inevitável. Eu empurro todos os meus problemas pro domingo à noite. Peço uma pizza. Como feito uma louca, sem culpa, enquanto escuto aquela musiquinha insuportável do Fantástico. Depois tomo os meus comprimidinhos para dormir e só acordo, na terça-feira. Sim, porque segunda-feira me deprime mais ainda...
Saiu decepcionada. Fora incapaz de construir amizades produtivas. Há tempos também não amava. Não conseguia amar a própria mãe. Estava oca em todos os sentidos. Quando conhecia alguém interessante, imediatamente não o imaginava tornando possíveis suas segundas intenções. Até o suicídio fora adiado centenas de vezes. Ao tentar atravessar a rua, completamente presa a suas angústias, Clara sentiu quando alguém lhe puxou o braço. Mal teve tempo de ouvir o motorista vociferando qualquer coisa de dentro do carro e partir.
– O sinal estava fechado.
– Sinal? Que sinal?
– Aquele dali. Agora já abriu. Você está bem?
– Só um pouco assustada. Foi tudo tão rápido.
– Acidentes acontecem num piscar de olhos. Assim diz o meu pai.
– Eu ando tão dispersiva ultimamente. E logo nesta cidade onde as pessoas parecem programadas a fazer só o que é certo. Erros são intoleráveis em São Paulo.
Por alguma razão o rapaz, sim era um jovem de vinte e poucos anos, não conseguiu deixá-la ali, sozinha. O dia indo embora. Tantos perigos. Ofereceu sua companhia até encontrar um táxi. A estação do metrô também não estava longe.
– Obrigada. Eu moro perto.
– Se quiser posso acompanhá-la. Estou sem fazer nada mesmo.
Sentaram-se para um café e nunca mais se deixaram.

100 ANOS DE ENCANTAMENTO



Uma das exposições mais bacanas que vi recentemente foi "Oscar Niemeyer – 100 anos de encantamento", no Memorial da América Latina. As fotos de 360 graus de Luis Claudio Lacerda e Rogério Randolph impressionam pela alta definição e pelo cuidado no registro de algumas das melhores obras do arquiteto Oscar Niemeyer. Selecionei um trecho de um depoimento de Niemeyer, sobre o seu método de trabalho, o qual eu gosto bastante porque é muito próximo de como eu vejo a literatura: "Não acredito numa arquitetura ideal, insubstituível, mas somente em boa arquitetura. Gosto de Le Corbusier, como gosto de Mies, de Picasso como de Matisse, de Machado como de Eça". Quem perdeu pode comprar o livro "Oscar Niemeyer 360 graus". Vale a pena ter em casa.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

DIAS DE INVERNO


De volta a São Paulo depois de um curto período, no Guarujá, onde pude repensar coisas importantes que norteiam a minha vida. Uma espécie de auto-exílio produtivo também. Escrevi um curta-metragem já esperado e “O Reencontro” que está postado aqui. Li também muitos livros. Cada qual com as suas particularidades, mas só recomendo mesmo: “Luísa” e “Aos meus amigos”, da Maria Adelaide Amaral (aliás, a próxima minissérie da Globo é baseada em “Aos meus amigos”); “O Ladrão de Sonhos”, do Ivan Ângelo (contos formidáveis); “Um sopro de vida – pulsações”, da Clarice Lispector (fundamental para quem pretende escrever profissionalmente ou não) e “Olhai os Lírios do Campo”, do Erico Verissimo (simples, poético, tocante). Trilha sonora nada invernal. “FUTURESEX/LOVESUNDS”, de Justin Timberlake. Porque é preciso também brincar de ser feliz.

Dia desses, sonhei que um avião se despedaçava, no quintal da minha avó. Acordei ofegante, mas, em seguida, suspirei aliviado. Sonho é sonho. Novamente dormindo, dessa vez com a TV ligada, sou surpreendido com a notícia da tragédia com o avião da TAM. Fiquei e ainda estou perplexo. Aliás, acho que ninguém deveria perder a sua capacidade de indignação, sobretudo nesses momentos. Fica aqui a minha solidariedade às famílias das vítimas.

MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA

O REENCONTRO

Marcelo a esperava com certa tranqüilidade. De cima do Morro do Maluf parecia ainda mais desafiador. Sentia-se poderoso ali. Percebeu que a pedra estava escorregadia. Recuou. Não era bobo. Ventava muito forte. Marcelo tinha predileção por dias assim. “Que belezinha deve ser Londres” – sonhava. Olhou para o céu manchado de um cinza muito escuro. Alegrou-se. Tirou do bolso um cigarro, o mais vagabundo. Acendeu com dificuldade. Tragou. Sentiu-se mais relaxado. Consultou o relógio e nenhum sinal de Letícia. “– Talvez, tenha desistido” – pensou em voz alta. Imediatamente voltou atrás: “– Não. Não é do feitio dela”. Não se passou dois segundos e Letícia chegou. “– Falou no diabo...” – e não houve tempo de pensar em mais nada. Vinha vaporosa em sua direção, num vestido lilás, estampado de rosas brancas. Começou uma chuva miúda, triste e constante.
– Não posso demorar muito. Só vim mesmo porque ainda te considero. Saí de casa feito uma doida. Só fui perceber que tinha esquecido o guarda-chuva, quando já estava no ônibus. Aproveitei que estava por aqui mesmo e fui dar uma espiadinha no mar. Coisa rápida. As ondas tão violentas! Se me atrasei, foi pouco. E que lugarzinho este, hein? Tive que subir em dois pulos. No meio da encosta, uns pedreiros começaram a mexer comigo. Fiquei assustadíssima. Ah, desculpa. Eu e minha mania de falar pelos cotovelos, não é? (seca) O que você quer comigo?
– Você.
– Por favor, Marcelo. Você não me chamou até aqui pra me dizer isso, não é? Francamente.
– Não.
– Ah, fico mais tranqüila. Então desembucha de uma vez, porque daqui a pouco vai escurecer e eu preciso voltar pra casa. Você sabe que eu não tenho condução própria. Ainda. O Mourão prometeu tirar uma moto pra mim. Seminova, pra começar. Eu nem deveria tá te contando essas coisas, porque você pode achar que é pra te fazer ciúme, mas eu juro que não é a minha intenção. (desejando mudar de assunto) Só, ontem, fui me dar conta de que estou namorando, pela segunda vez, um cara com a letra M. Que coincidência, não é?
– Verdade.
Letícia olhou em redor, contemplativa.
– Lembro como se fosse hoje a primeira vez que você me trouxe aqui, naquele fusquinha do seu amigo. Transamos e tudo. Eu era tão boba. A subida foi um sacrifício, mas depois valeu a pena. Tenho até um pouco de saudade daquela época, sabia? Você pode não valer um centavo, mas tem uma pegada! O Mourão que não me ouça, ai meu Deus! Essa chuvinha fina também me deixa nos nervos. Fica esse chove não molha. Ô, São Pedro, se decide né, meu nego? Por que você também gosta tanto de chuva, hein? Que troço estranho.
– Porque ela só vem quando quer. Não é intrometida como o sol.
– Sempre essa mania de ser diferente. Você não muda mesmo.
– Você quer que eu mude?
– Sinceramente? Não. Eu só dou pitaco agora naquilo que é meu. Portanto cada um na sua, meu filho. E eu tô muito bem com o Mourão, obrigada. (desejando mudar de assunto) Nem te conto. Ele vai comprar um carrinho de lanche pra minha mãe. (orgulhosa) É um cara de posses, sabe como é. Dona Zefina tá numa alegria só. Não sabe mais o que fazer pra agradar o genro. Sim, porque nosso casamento é dia menos dia. Fato consumado. No duro.
– Tô sabendo.
– A Claudete acha que a gente tem que ostentar um pouco. Fazer um churrasco maior, com muito mais cerveja, chamar os garotos do Quebra Galho pra dar uma animada, sabe como é? É aquela história, casamento não é todo dia.
– Também acho.
– Só no cartório mesmo. Nada contra casamento na igreja. Nem sou também uma alma perdida. É que eu não quero muitos rapapés, sabe? (com uma ponta de tristeza) Não fica, assim, Marcelo. Eu sei que você queria estar no lugar dele. Mas há males que vem para o bem. O meu caso, por exemplo. Sofri no começo, mas depois veio a compensação. O Mourão é tão... Tão humano. Aprendi isso numa novela. Achei bonito...
Marcelo já não suportava aquela lengalenga. Uma grande raiva foi lhe dominando o espírito.
– Que cara é essa, Marcelo? Pára com isso! Tô ficando nervosa. Com medo...
Letícia ainda lhe estendeu uma mão com humildade. Balbuciou alguma coisa. Provavelmente um último pedido. Uma súplica de socorro. Tudo em vão. Ela reencontraria o mar dali a poucos segundos e Marcelo ainda ficou, lá em cima, rindo com aquele seu jeito ruim de ser. Como um monstro moderno. E, já satisfeito, voltou pra casa. Como se nada tivesse acontecido.

A HORA DE CLARICE


Meu primeiro contato com um texto de Clarice Lispector ocorreu, na minha adolescência. Costumava tomar para mim os livros de literatura do meu irmão mais velho e, num deles, estava o maravilhoso conto “Uma Amizade Sincera”. Li. Reli. Nunca mais parei. Até hoje é um dos textos que mais me tocam. E depois vieram: “Laços de família”, “A hora da estrela”, “Água-viva”, “Uma Aprendizagem ou O livro dos prazeres” e “Um sopro de vida – pulsações”. Fui lendo cada um, sem muito critério, dependendo exclusivamente do meu estado de espírito. Já reservei a “A paixão segundo G. H.”, para um momento de tranqüilidade. E, claro, pretendo continuar descobrindo o mundo de Clarice. Não tenho pressa. Quando soube que o Museu da Língua Portuguesa iria fazer a exposição “Clarice Lispector – A hora da estrela”, fiquei exultante de felicidade. Orgulhoso. E não tenho a menor vergonha de confessar esses pequenos atos gratuitos e apaixonantes da vida. Aproveitei para ir num sábado (sim, porque é de graça). Dia de sol como poucos. Na entrada da Estação da Luz, havia muitos ônibus de excursões. A minha sensação de orgulho ficou ainda maior. A fila não me desanimou. Paciência é uma virtude que cultivo com muito carinho. Meia hora depois, já estava lá dentro. A entrada é emocionante. Penumbra. Tecidos transparentes com lindas imagens de Clarice sobrepostos a algumas de suas frases. Essas frases foram selecionadas pelo poeta Ferreira Gullar. A intenção talvez seja reproduzir visualmente o mistério por traz da “personagem” Clarice Lispector e da sua obra. Não resisti e fiz duas fotos dessa sala (claro que escondido dos muitos monitores). Não me perguntem como. Quando me dei conta, já estava com as duas imagens na câmera e um sorriso de orelha a orelha. E não vou ficar contando tudo porque perde a graça, o legal é ir lá, descobrir os detalhes e se encantar. Mas só para deixar quem não foi com água na boca. Cartas, manuscritos, documentos e fotos da escritora estão ao alcance de todos (pelo menos, de nossos olhos). Dedique um tempo para ler algumas cartas, sobretudo as que ela enviava ao filho, nos Estados Unidos. São textos emocionantes. Belos. Repletos de ternura. E também assistam a entrevista, feita pouco antes de sua morte, em 1977, pelo jornalista Julio Lerner, para o programa Panorama, da TV Cultura. Um dia, ainda terei uma cópia desse vídeo. É de arrepiar. A voz. O olhar indecifrável e penetrante. A elegância. Sou radicalmente contra o tabagismo, mas até o modo como ela fumava possui um certo charme. Há trechos dessa entrevista, no site oficial da escritora
www.claricelispector.com.br.

“REVELAÇÕES” DE CLARICE.

“Vi a Esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou”.

“Escrever uma só linha basta para salvar o coração”.

“Com uma vida pobre (e qual é a vida rica?) com a vida pobre eu me salvo dela através do imaginário”.

“Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo”.

“Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias”.

“Em escrever eu não tenho nenhuma garantia. Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer”.

“Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa”.

“Nem tudo que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa”.

“Sinto que cheguei quase à liberdade. A ponto de não precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco: cheio do maior silêncio”.

sexta-feira, 22 de junho de 2007

A BOLSA

A socialite chega a uma loja, na Oscar Freire. Corre os olhos nas vitrines. Toca algumas peças. Nada lhe agrada.
– É de bambu?
– Como, assim, de bambu?
– Estou procurando alguma coisa mais sustentável, sabe?
– Temos um sutiã bem diferente. Moderno. Jeans. Pode ser usado também como top. Olha este que lindo.
– Quantas lavagens? Isso é muito importante.
– Mas o produto é novo...
– Quem sabe alguma coisa em algodão. Um algodão limpinho. Nada de agrotóxico.
– As camisetas com aplicações em cristais estão em alta. A estampa é exclusiva. Uma pequena jóia, não acha?
– Depois de “Diamante de Sangue”, revi meu conceito sobre jóias. Talvez, um acessório em couro vegetal. Uma bolsa, por exemplo.
– “Mas couro não é de animal, meu Deus? Essa mulher só pode tá louca”. Temos maxibolsas fabulosas. Esta daqui tá, na capa da VOGUE, deste mês. Crocodilo. Os bichos vieram com tudo, nesta estação.
A socialite apaixona-se pela bolsa. E, grudada à vendedora, implora:
– Diz que é sintética. Diz que é sintética, pelo amor de Deus! Eu compro duas, mas diz que é sintética.

IMPRESSÕES AVULSAS

A maratona fashion terminou. A comemoração, se é que podemos chamar assim, é no Café de la Musique. Meu DJ favorito, em São Paulo, Paulinho Borghosian, faz a noite valer a pena. Ainda bem. O som estava realmente ótimo. Em pouco tempo, a casa lota. Modelos de uma famosa agência de São Paulo distribuem sorrisos e amabilidade técnica. Salvo exceções, claro. Faço um estudo minucioso da área. Aprovo a decoração. Detesto o serviço de bar (garçons incluídos) Atrevo-me a fazer alguns poucos movimentos de corpo, para não parecer um objeto não identificado entre os bacanas. Agrado. Findo o meu momento glam, volto pra casa com uma pergunta inquieta, na cabeça. Havia alguma coisa de errado na festa, sem contar, evidentemente, o péssimo atendimento na saída. Mas o quê? Só descubro ao acordar, no dia seguinte. Não havia um único negro como convidado. Vejam bem, não estou falando de seguranças e cia. Por isso, fiquei pensando na possibilidade de cotas para negros também no Café de la Musique.

EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DO VAMPIRO

Consegui, enfim, assisti à peça Educação Sentimental do Vampiro, de Dalton Trevisan, muito bem encenada pela Sutil Companhia de Teatro, com direção de Felipe Hirsch. O texto é ótimo, preciso, chegando, muitas vezes, a lembrar Kafka e o próprio Nelson Rodrigues. Cenário maravilhoso de Daniela Tomas e Felipe Tassara. A direção de arte é primorosa e a trilha sonora também. Recomendo. Fica, no Teatro Popular do Sesi, na Av. Paulista, 1.313. Até 18 de novembro. Quartas, quintas e domingos: entrada franca. Se manda!

SIM, EU GOSTO DA VANESSA DA MATA

Sempre gostei das músicas da Vanessa da Mata, mas nunca tinha ouvido um cd inteirinho dela. Fiz isso pela primeira vez com o seu mais recente trabalho, “Sim”. É de uma delicadeza quase inacreditável. Muito bom. E nem precisa estar amando ou sofrendo de amor para se identificar com ele. O que já facilita as coisas. A capa também é incrível! Aliás, eu não me canso de olhar pra ela. Por que será?

MARATONA FASHION




UM DIA NO SPFW

Primeira vez no São Paulo Fashion Week. Confesso que imaginava uma outra atmosfera, com muito mais glamour. Não cheguei a ficar decepcionado, mas saí de lá com a nítida impressão de que os rumos da moda brasileira já não são mais os mesmos. O próprio prédio da Bienal que, na TV, tem uma certa imponência, a olho nu não esconde suas imperfeições. Salvam-se as curvas sinuosas tão características às obras de Niemayer. Logo de cara, vejo saindo de uma van a editora de moda Lilian Pacce e sua família. Meu instinto de paparazzi pede para clicá-los. É o que faço. Logo na entrada, a distribuição de copinhos de água pela metade dá o tom da festa: a água está acabando e precisamos fazer alguma coisa. Penso em tomar banho, uma vez por semana. O Planeta agradece, mas a minha mãe não deve gostar nada disso. Há poucos metros dali, no chão, copinhos de plásticos vazios e folhetos repousam solitários e rebeldes. É. A consciência ecológica não atingiu a todos. O verbo de ordem é “reciclar”. Pena que alguns estilistas faltaram nessa aula. E os castings dos modelos? Os mesmos rostos. As mesmas formas. Talvez, isso explique os atrasos insuportáveis, em alguns desfiles. Carolina Pantoliano, que eu tive a chance de fotografá-la no seu debut nas passarelas, ora abria um desfile, ora fechava outro. Ainda tímida, mas com uma certa delicadeza no andar. Despontando, lá fora, nas páginas da revista Numéro e i-D. Bruna Tenório tem uma beleza interessante, a que mais me agradou, pra falar a verdade. Uma Capitu das passarelas. Já o modelo Ismael Lunkes é o mais low-profile. Com o qual eu mais me identifiquei. Sempre na dele. O modelo Vinicius Briani desfila sem qualquer maneirismo. Perfeito como dândi moderno. O backstage do estilista Mario Queiroz, que pessoalmente lembra muito o diretor Antunes Filho, estava tranqüilo, quase zen. Pasmem, tinha até um modelo lendo um livro. Tudo bem, de auto-ajuda, mas já é alguma coisa. Os lanchinhos desapareceram em alguns segundos. Tive que me contentar com uma limonada e uma torradinha com geléia de tangerina. Eu esqueço que, nesses lugares, é tudo muito light. Mas tinha massagem também. Não para os pobres mortais, como eu, claro. Gostei das redes colocadas próximas à rampa de acesso ao segundo e ao terceiro andar. Vistas de cima, a impressão era de um daqueles barcos gigantes de Manaus. Os mais inspirados podiam ver também um hotel bem ao estilo Dorival Caymmi. O SPFW Journal anuncia “Branco é o futuro”. Nas exposições, a cor predomina. Imagino o evento tomado pelos Filhos de Gandhi. O tapete branco da paz passando e emanando boas vibrações, afinal, o pecado mais cometido no SPFW é a inveja. De repente, bate uma invejinha branca naquele estilista: “Por que eu não tive essa idéia, antes? Por que, hein?” Os mais cruéis ficam na corrente positiva, ou melhor, negativa: “Ela vai tropeçar na passarela. Tropeça, desgraçada. Tropeça!”. Eu também pensei que fosse a vaidade, mas não é. Ou é em menor grau. Luxúria só se for em pensamento, porque é tudo muito monitorado. Bem, também não fui ao banheiro. Nos corredores, circulam pessoas dos mais variados estilos. Um balaio de extravagâncias. O ator Emílio Orciollo Netto passa ao meu lado escoltando a sua acompanhante (sei que acompanhante soa como acompanhante de executivo ou mesmo garota de programa, mas como vou saber se ela é namorada dele, esposa ou nenhuma coisa nem outra?). Aliás, celebridade estava em extinção por lá. Melhor ir tirar a sorte, no realejo da entrada. Um realejo que não agride a natureza. Sem periquito. Já tinha cruzado com o simpático dono do realejo, na Paulista. A sua ave-ganha-pão chama-se Cristina, que, por conta do SPFW, gozou de uma merecida semana de folga. Pelo menos, alguém tinha que ganhar alguma coisa, já que o comentário era de que a maioria dos modelos desfilou sem cachê. Por duas vezes, tiro o mesmo bilhetinho e em locais e horários diferentes. Aprendi a não duvidar dessas coisas. A noite se aproxima e é hora de voltar pra casa cheio de novidades. Ah, lembram da foto da Lilian Pacce e família? Foi parar no GNT Fashion. Fui convidado a mostrar na TV uma imagem que só eu fiz, no prédio da Bienal. Escolheram a da apresentadora do programa. Por que será?
P.S. Devo a minha visita relâmpago ao SPFW a duas pessoas bem legais, Marcos Cunha e Roni. Valeu!

quarta-feira, 6 de junho de 2007

IMPRESSÕES AVULSAS

Marca Página
Li meu primeiro livro da Fernanda Young. Comecei por “As Pessoas dos Livros”. É bem interessante. Duas coisas me chamaram atenção. A linguagem que é bem moderna. Precisamos. E o caos psicológico, peculiar a seus personagens, que é abordado com muita leveza e com um humor mais... Eu ia completar com “inteligente”, mas lembrei que toda forma de humor é inteligente. Ou alguém já ouviu falar em humor burro? O programa dela “Irritando Fernanda Young”, no GNT, eu também acho uma grande sacada.

MSF
Devo fazer parte, mais uma vez, do MSF (Movimento dos Sem FLIP). É. Sem grana fica impossível ir a Paraty para participar da feira literária. De qualquer forma, vou acompanhar pela TV Cultura que promete fazer uma grande cobertura do evento. Simplesmente só vou perder a chance de conhecer o escritor e roteirista mexicano Guillermo Arriaga. Só isso. :-(

Ecologicamente-Up-To-Date
E virou moda falar de aquecimento global, sustentabilidade, salvar a Amazônia, os índios, os ursos polares, o Tietê, etc, etc, etc. Até a folha de pagamento do meu aluguel veio em papel reciclado. Muito civilizado! A SPFW vai falar da importância da água. Que chique, não? O documentário do ex-vice-presidente dos EUA, Al Gore, ganhou até dois Oscar. Alguém assistiu? Parece até que vai rolar, em alguns lugares do globo, o Brasil entre eles, um daqueles famosos shows-comoventes, onde todos estão ali pensando em tudo, menos em “salvar o planeta”. Quando muito, têm aqueles cinco minutos de consciência ecologicamente correta. Depois passa. J-Lo no palco. Incrível. O cara sem pregar os olhos. A namorada cutucando: “Carlos Henrique, estou falando com você!”. E ele em seu discurso pra lá de ecológico: “Também acho foda esse lance de jogar bituca de cigarro, na rua. Demora séculos pra se decompor. Que oxigênio ela tem, você não acha?”. Não sou contra as iniciativas em favor da preservação do meio ambiente. Pelo contrário. Só acho que não deve ser um modismo. Uma imitação da Gisele Bündchen. O Sting já teve seus dias de super-herói dos índios do Xingu e, no entanto? O Michael Jackson, então, nem se fala. Reciclagem deveria ser obrigatória. As prefeituras deveriam estar preparadas pra isso. As escolas deveriam se empenhar mais no ensino de cidadania e ecologia. Vocês não têm idéia da quantidade de lixo que se tira de uma sala de aula. Pra ir à esquina tem que tirar o carro da garagem? E, assim, vamos. Pessimismos à parte, se não houver mudanças concretas da parte do governo e da sociedade, o ecologicamente-up-to-date vai dar lugar ao ecologicamente necessário. E não deve demorar muito.
Preto e Branco
Ainda no campo das artes visuais. Vale a pena conferir a exposição “Eu olhei tanto”, do fotógrafo Carlos Moreira, na CAIXA Cultural São Paulo, também na Av. Paulista, 2.083, até 01 de julho. As imagens de Santos e Guarujá são incríveis. Todas em P&B. Luz espetacular. Saí do local encantado. Claro que há um certo bairrismo da minha parte. Alguma coisa contra?

Abelhudagem
Manhã de sábado. Av. Paulista. Anúncio da exposição “Vibrações” de Romero Britto. Ignoro a data de abertura. Desço um pequeno lance de escadas e já me encontro, no local da exposição. Detalhe. Ainda estão pendurando os quadros, alguns ainda em caixas, testando os suportes de luz, etc. Saco (o verbo é bem este) a minha câmera e começo a fotografar. Só me avisam que é proibido, minutos depois. Tarde demais. Saio com algumas imagens “inéditas”. Uma semana depois, volto lá. Trata-se de uma pequena mostra, mas muito bacana. Há quem torça o nariz para a arte do cara. Eu gosto, sem muito entusiasmo, mas gosto. Av. Paulista, 1.111, no Espaço Cultural Citi. Até 22 de junho.

Samba do Crioulo Doido
De um vendedor de água, no Centro de São Paulo: “Depois de matar a jibóia, jararaca deita e rola”. Isso é que é sabedoria popular!

Humor Cáustico
De um simpático atendente de lanchonete, no Centro de São Paulo: “Seus sanduíches vão chegar daqui a pouco, com todo o respeito”. Resposta: “Trocaria o ‘com todo respeito’ por ‘com toda higiene’”. Claro que ele não me ouviu.

Humor Negro de Mãe
De um vendedor-pedante pra minha mãe (também no centro de São Paulo): “Tá precisando de um atendimento especial?”. “Não. Estou precisando de preços especiais”. Que orgulho!

FLORES DE MAIO E OS MUROS DA CIDADE




A DIVISÃO

Janete finge lixar as unhas, enquanto Claudionor prepara a mala. Um ignorando a presença do outro. Divórcio implica quase sempre em total ausência de civilidade, mas Claudionor quer provar o contrário sendo o primeiro a falar.
– Faz questão da enciclopédia?
– Não. Você a usa mais do que eu.
– É. Esqueci que você não dá a mínima para aprender coisas novas.
– Está me chamando de burra, Claudionor?
– Foi só uma observação?
– Observação que ofende, não é? (pausa) O que tá fazendo?
– Embrulhando a galinha d’angola. Vou levar a mãe.
– E eu fico só com as filhinhas?
– Só? São três. E depois fui eu que as trouxe de Caruaru.
– Mas a idéia foi minha.
– Tá. Devolvo a mãe. Mas pra não deixar as coitadinhas órfãs.
– Melhor assim.
– Em compensação fico com a tartaruga.
– Por mim tudo bem. Não gosto dela mesmo. Aliás, aquela nossa viagem a Paquetá foi um erro. Que idéia a sua achar que eu me parecia com a Moreninha. Pra começo de conversa, eu nem sou morena.
– Pra você ver como eu estava apaixonado. Mas também não precisava passar a viagem inteira de cara amarrada. (pausa) Pensando bem é melhor deixar a tartaruguinha por aqui. Não vou querer lembrar da sua completa falta de entusiasmo em viagens culturais. Mas o gato não. Presente da minha mãe. Ele tem esse pescoço longo. Diferente.
– Sempre achei esse gato mais parecido com uma girafa que qualquer outra coisa. Pra falar a verdade, nunca entendi esse presente. Você odeia gatos.
– Mas adoro a minha a mãe.
– Pelo menos, nos sobrou alguma coisa em comum. Eu também adoro a velha. Digo, a minha sogra.
– Ex-sogra.
– Isso. Ex-sogra. “Como é bom falar isso. Que mantra delicioso. Ex-sogra. Ex-sogra. Ex-sogra...”.
– Não abro mão do pingüim.
– De forma alguma.
– Por quê?
– Já me afeiçoei a ele. Você sabe como eu sou carente.
– Mas quem comprou fui eu. Paguei uma fortuna.
– Comprou pra depois tirá-lo do seu habitat natural? Anos e anos de National Geographic pra nada?
– Do que você tá falando?
– Da geladeira, oras. Do que haveria de ser? Pingüins só combinam com geladeiras. E a geladeira é minha.
– Eu havia esquecido.
Mais silêncio. É a vez de Janete puxar conversa.
– Você poderia deixar também aquele seu pijama azul de algodão. Sei lá, tá tão velhinho.
– Mas é o meu favorito.
– Quem sabe só ficar com a parte de cima e eu costuro a de baixo... Daí você pode vir pegar quando quiser.
– Você acha?
– É tão civilizado. Vi num filme americano.
– Mas o meu pijama não tá furado.
– Que cabeça a minha, Claudionor! Eu tava pensando era naquela sua calça jeans da idade da pedra, sabe? Aliás, vamos combinar, parece mais um pano de chão. Eu não vou dar conta de consertá-la do dia pra noite. Sou tão caprichosa.
– Aquela calça é assim mesmo, Janete. É uma relíquia. Eu guardo só de recordação. Foi com ela que eu fui ao meu primeiro Rock in Rio.
– Que original.
– Fica com “O Abraço”, tá?
– No começo era “Fica comigo esta noite” e agora só sobrou o “Fica com o abraço”? Que palhaçada!
– Estou falando do quadro do Romero Britto.
– Ah tá, você se refere àquela réplica descarada que você comprou, no centro.
– O que vale é a intenção.
– Eu preferia as suas segundas intenções, logo que me conheceu. É colorido demais. Estou pensando numa decoração mais clean para o nosso apartamento. Retificando: o meu apartamento.
– Ele não cabe na mala.
– E por isso agora é meu? Não aceito esmolas.
– Tá bom. Então, faz o que você quiser com o quadro. Estou mesmo numa fase Beatriz Milhhazes. Difícil não rimar.
Claudionor prepara-se para fechar a mala.
– Já vai fechar o zíper?
– Nem reparei que meu fecho éclair tava aberto.
– Ai, Claudionor, fecho éclair é tão antigo. Estou falando do zíper da sua mala, tonto.
– Desculpa.
– E pára com essa mania de se desculpar por tudo. A única pessoa que tem pena de você é você mesmo.
– Bem, eu já vou indo. Acho que tô levando todas as minhas coisas.
– É melhor conferir. Daqui pra frente, vai ser difícil me achar em casa.
– Só falta o Paul, mas ele também não vai na mala. Nem poderia.
– Como assim o Paul? Paul, o nosso filho?
– Sim. O Paul.
– Você não vai fazer isso comigo, Claudionor. Separar um filho de uma mãe é um crime universal. Inafiançável. Vou ligar pro meu advogado, agora.
– Mas ele é só um cachorro, Janete.
– E daí? Podia ser um camundongo.
– Eu não vou deixá-lo aqui com você.
– E eu não vou deixá-lo ir com você.
Impasse.
– Abro mão dos finais de semana.
– Pra você ir tomar a sua “brejinha” e jogar seu futebolzinho com os seus amigos, enquanto eu fico de babá do cachorro? Não, baby. Não mesmo.
– Tá. Quinze dias com você e quinze comigo.
– Só consigo ser mãe em tempo integral. Claudionor, o Paul acaba de entrar na adolescência, tá namorando a Kelly do 502, logo vai querer constituir família. Já imaginou a bagunça que vai ser a cabeça desse cachorro, se tiver que mudar de casa, terminar o namoro, etc? Puxa, primeiro amor marca pra caramba!
– Cães são flexíveis.
– No cio?
– Não quero saber. Eu não saio daqui sem o Paul e ponto.
– Ótimo.
Claudionor desfez rapidamente a mala e sapecou um beijou em Janete. Paul vendo tudo. Orgulhoso de seus pais.

VISLUMBRE DE FELICIDADE

Faz frio em São Paulo. E eu gosto muito do frio. Combina comigo e com o meu estado de espírito atual. Tudo em mim neva. Congelo-me facilmente. E não consigo mais ficar na janela. Em compensação sou a própria janela. Pingos de chuva chocam-se contra mim. E não grito. Suporto. Aliás, tenho suportado tantas coisas. A minha lágrima não cumpre o seu percurso. Não porque não quer. Antes, petrifica-se. No meu rosto. Ali. Imóvel. Para derreter na primavera. Se não for tarde demais. E andando pelas ruas úmidas vejo uma cena incrível. Solar. Saía do supermercado com as minhas pequenas compras nas mãos. Vento. Chuva fina e intermitente. Não muito longe dali, um velhinho caminha com certa dificuldade. Não tem pressa. A vida já se perdeu de vista. Traz, no corpo, apenas um cardigã cinza. No rosto, pesadas armações que lhe conferem uma imagem de intelectual de séculos atrás. Os olhos talvez fossem claros. Cabelos brancos. Não resisti e fiquei observando tudo. Qual seria a sua intenção ao se aproximar daquela casa? Por que parou diante do portão de ferro? Eis que surge do interior um cão. Caramelo. Pêlos eriçados. Aproxima-se do portão querendo festa. O velhinho obedece. Os dois ficam ali por alguns instantes. Carinhos. Afagos na manhã cinza e fria de maio. Parecem se entender muito bem. Código do amor. Amor que não exige compensações. Apenas livre doação.

*Foto tirada numa exposição sobre o poeta Mario Quintana, no centro de São Paulo (2006).

sexta-feira, 11 de maio de 2007

LIBERDADE E ARTE

É muito bacana a exposição “Estéticas, sonhos e utopias dos artistas do mundo pela liberdade”. Fica, no Centro Cultural FIESP / Galeria de arte do SESI, na Av. Paulista, 1313. Até 24 de junho de 2007.

INVESTIGANDO A LÍNGUA

Outro dia, me peguei pensando por que gosto da palavra “bacana”. Por que “bacana” e não “legal”? Cada pessoa tem afinidade por umas palavras e outras não. Comigo funciona assim. Já tive, por exemplo, muito preconceito em relação à palavra “coisa”. Sempre me pareceu uma palavra menor, vaga, imprecisa. Torcia o nariz, quando alguém resmungava: “Que coisa!”. Tá e daí, que coisa o quê? A impressão é que ela já nasceu pela metade. Por falar nisso, o nascimento das palavras é para mim um grande mistério. Fico pensando quem teria dito certas palavras pela primeira vez. Agora, gostaria de saber quem criou a palavra “bacana”. Teria alguma relação com “bacanal”? Teria um passado nobre ou nasceu da marginalidade da fala? Imagino um figurão do tempo do Império falando à boca pequena: “Viu que mulatinha bacana?”. É. Não combina com aquela época. Mas não importa. Pra mim, “bacana” vai ser sempre uma palavra... bacana. Caetano Veloso fez até uma música chamada “Superbacana”. Mas aí já não é a mesma coisa. “Bacana” soa melhor solitária, ingênua, irresponsável. Costumo criar em cima de títulos e estive pensando em “Bacanas e Babacas”. Daria uma ótima comédia de costumes. Por favor, alguém saberia me dizer qual a origem da palavra “bacana”?

sexta-feira, 27 de abril de 2007

O COLECIONADOR DE HISTÓRIAS

*“O real é tão imaginário que o falso se torna verdadeiro”
Ignácio de Loyola Brandão

Sexta-feira. Dia irresponsável. O sol inclemente. Como de costume, andava sem grandes ambições pela Av. Paulista, o tapete financeiro da cidade de São Paulo. Anônimos indo e vindo de um lado para o outro. Nada extraordinário. Apenas um casal me chama atenção. Conversavam atentos, encostados a uma mureta, próximos à estação do metrô. E dava pra ver que tinham intimidade. “Qual será o assunto?” – me perguntei de chofre, no alto da minha sutil curiosidade. Fui chegando como quem não quer nada. “Segredos de alcova? Só pode”. Desviando sempre o olhar. Disfarçando. Murmurei um: “Meu Deus, que calor é esse?”. Apenas para aparentar naturalidade. Susto. A moça fez um meneio de cabeça. Em seguida, continuou de onde havia parado. Ufa!
– Ela tinha uma dessas belezas enjoativas, mas suportável. Tipo Ana Paula Arósio, sabe?
– Boneca de porcelana.
– Estava mais pra bonequinha de luxo, se é que você me entende.
O rapaz sorriu sem vontade. Eu comemorei. “Mais. Mais. Mais. Continuem”.
– Namorava um cara humilde. Uma pedra de ouro. Só tinha um único defeito, era pobre. E pobre nasceu condenado à figuração. Infelizmente.
– E ela sonhava com um príncipe. Já vi esse filme.
– Sonhava nada. Queria. De Ferrari e tudo. Só as honestas sonham.
– E se conheceram onde?
– No trabalho. Era patrão dela.
– E o outro?
– O outro era o patrão. O Namorado? Coitado. Ia buscá-la, todo dia, às seis horas da tarde. De vez em quando, ainda passavam numa igreja. Ela dizia que queria se casar de branco e tudo. Pode uma coisa dessas?
– Sem vergonha.
– Põe sem vergonha nisso. Eu os apresentei, na escola. Carrego essa culpa até hoje, Lourival.
– Mas e aí? O namorado descobriu?
– Vamos indo. A nossa hora de almoço já está acabando. Eu te conto, no caminho. Descobriu, sim.
“Logo agora?”. Levantaram e caminharam até um prédio que ficava a poucos metros dali. Fui atrás. Na portaria, me barraram.
– Aonde o senhor deseja ir?
Olhei atônito para os lados, depois para o casal que ainda conversava, enquanto o elevador não vinha. Por sorte, vi o nome de uma imobiliária, numa pequena placa, que enfeitava (ou enfeava?) uma parede morta.
– Imobiliária Cruzeiro do Sul.
– Seu RG.
– Estou com um pouco de pressa.
Enfim, o crachá. Levantei os olhos e ainda os vi entrando, no elevador.
– O elevador! Segurem o elevador! Eu preciso entrar nesse elevador – gritei desesperado.
Ofegante. Coração aos pulos. Gotinhas de suor descendo em cascata pela minha testa.
– Muito obrigado.
Entreolharam-se e nada disseram. Para minha decepção, já não conversavam como antes. Ainda insisti:
– Poderiam repetir o final? Só o final.

*Do perturbador e fascinante “O homem que odiava segunda-feira”, de Ignácio de Loyola Brandão. O escritor também inspirou “O colecionador de histórias”.

segunda-feira, 9 de abril de 2007

PRIMEIRA PESSOA

Tentei fugir ao máximo do lugar-comum primeiro-post-falar-de-si-mesmo, mas, pensando bem, é a melhor forma de vocês entenderem o meu MUNDO IMAGINÁRIO. Espécie de *Pasárgada virtual que, a partir de agora, divido com vocês.

Fui inaugurado pra vida, no dia 25 de março de 1980. Nasci sob o signo de Áries. **Consegui, hoje, estar em paz com a minha guerra, mas ainda não venci o obstáculo da perfeição. Aceito os protestos, mas ouso declarar. O que dizem os astros só enfeitam a vida. A minha cor favorita é o vermelho.

Nasci para amar e escrever. As minhas duas salvações. Não aprendi direito nem uma coisa nem outra. Amo o que posso e escrevo pra me libertar de ser apenas eu. Atualmente, os meus personagens querem existir. São muitos. E não tenho pressa. Tenho fome é de aprender. E leio sempre. Leio tudo que vocês possam imaginar. Tenho também um caso de amor com a Língua Portuguesa. Digo caso porque vivo flertando, sem sucesso, com outros idiomas. Sou formado em Letras e dei aulas, durante dois anos incansáveis. Experiência que devo voltar a repetir, um dia. Claro, se a minha vida for longe. Ou nem tanto. Já escrevi também, por um bom tempo, resenhas literárias, num portal bacana da internet brasileira.

Domino muito bem o universo das letras, mas me recuso a fazer uma coisa só. E detesto rótulos. Escrever apenas romance, ou contos, ou poesia, ou crítica literária, ou peças de teatro, ou longas, ou curtas, ou novelas, ou séries, etc. Ficaria muito limitado, se escolhesse apenas um caminho. Optei, então, por fazer um pouco de tudo. De escrever um pouco de tudo. De misturar prosa e poesia. De mesclar linguagens. De experimentar o moderno com o barroco. Exemplo. Estou revisando um romance que comecei, em 2001, onde predomina a linguagem cinematográfica. O resultado está sendo fantástico! Marceneiro. Arquiteto. Pintor de telas e de paredes. Cozinheiro. Diretor de teatro. Compositor. Publicitário. Assistente em agência de modelos... Fui e posso ser várias coisas. Graças a Deus.

Por que um blog? Porque acho bacana ter um espaço para debater criação, além de expor minhas opiniões e memórias, sem, necessariamente, estarem ligadas a imagens minhas. Continuo sendo apaixonado por fotografia. Vou manter o fotolog /fauguaruja, mas não devo postar nele com freqüência. Espero que este espaço me cative e não me escravize. E que escrever, aqui, seja mais prazeroso do que constante. Críticas e sugestões são sempre bem-vindas! É isso aí, pessoal!

*Alusão ao poema “Vou-me embora pra Pásargada”, de Manuel Bandeira. Para o poeta pernambucano, Pasárgada é um lugar mítico, símbolo das aspirações que se realizam.
**Referência explícita a uma frase da escritora Lygia Fagundes Telles, em “A disciplina do amor”.