quinta-feira, 17 de outubro de 2013

BRASIL, JÁ DEIXEI DE TE ENTENDER



Com a correria da minha exposição, terminei só agora lendo o discurso do escritor Luiz Ruffato, na feira do livro de Frankfurt, deste ano, onde o Brasil foi o país homenageado e também as declarações de Paula Lavigne, que representa o cantor Caetano Veloso e outros artistas nessa tentativa ridícula de proibir que biografias não autorizadas sejam lançadas. Vamos por partes. Primeiro o discurso do Ruffato. Fui pegando uma coisa aqui e outra ali, no Facebook, uns contra, outros a favor, mas me mantive em silêncio até ler o discurso dele na íntegra. Bom, pra quem não leu, vou fazer um resumão, mas o melhor mesmo é que cada um leia e tire as suas próprias conclusões. O escritor, bastante premiado, com uma obra traduzida em vários países (nunca li nada dele, tá?), foi um dos poucos escritores brasileiros selecionados para o maior evento literário do mundo e pegou todos de surpresa ao fazer um discurso falando da desigualdade social do Brasil e de como é ser escritor num país, "situado na periferia do mundo", e, cá entre nós, sem leitores. A saia justa foi geral. Aplaudido por muitos e, segundo o próprio escritor, "quase agredido por brasileiros", depois do discurso, o que ficou pra mim desse episódio foi: independente de gostarem ou não, de respeitarem ou não a posição dele, alguém precisava dizer aquilo.  
Essa experiência de morar fora, por dois anos, me fez ver que a imagem que a gente passa do Brasil pro mundo, de modo geral, não reflete a nossa realidade e isso ultrapassa aquele pretenso oportunismo com fins econômicos do tipo "vamos maquiar a pobreza do Brasil, para atrair mais turistas". Isso a gente já está cansado de saber e o resto do mundo faz a mesma coisa. Uma vez dentro do país, salve-se quem puder. O que eu acho um erro grave, por exemplo, é essa manutenção descarada da hipocrisia, a qual ele criticou muito bem. Destaco duas coisas interessantes do discurso: a complexa miscigenação do Brasil, que aos olhos do mundo é maravilhosa, mas que na prática resultou em racismo e exclusão social. Eu ainda entendo a nossa mistura de raças com alguma alegria, porque ela nos favoreceu bastante em termos de aspectos culturais, o único ponto em que discordo do escritor porque, segundo ele, ela foi fruto de um "estupro". OK, a metáfora foi impactante, mas, ainda que os colonizadores tenham apenas se aproveitado de índias e escravas, o resultado desse "estupro", pra mim, foi maravilhoso: um país sem cara definida. Por outro lado, o mesmo negro que samba pra divertir o gringo no carnaval é aquele que é rejeitado em uma vaga de emprego, depois da quarta-feira de cinzas. É ou não é? O x da questão é uma mudança de mentalidade. Mas como isso pode ser possível se o próprio modelo de educação do país é falho, insuficiente e não é prioridade do Governo Federal? Muita, muita contradição.
Outra coisa interessante é quando ele termina o discurso falando que, apesar de todos os problemas, acredita no poder transformador da literatura. Muita gente achou ingênuo da parte dele, utópico, etc, outros até não se sentiram representados, embora me pareceu, sim, um discurso em primeira pessoa. Então alguém me diga qual escritor brasileiro, exceto Paulo Coelho, pode se dar ao luxo de parar de escrever, se quiser, porque seus livros venderam ou continuarão vendendo como pão quente? Num país de sem leitores, pessoal? Eis o desafio. Aqueles que dão a cara a tapa e produzem cultura, no Brasil, sobretudo de forma independente, o fazem por amor ao seu ofício, porque são tantos os entraves no meio do caminho, burocracia, caceteação, que se aquilo não for realmente importante pra si mesmo, ninguém consegue fazer. E depois implicar porque o escritor falou da sua infância pobre… Se ele ascendeu socialmente com o fruto do próprio trabalho, qual o problema? Pior foi o presidente que se elegeu usando e abusando de um discurso populista muito do sem-vergonha e que tinha tudo para promover uma revolução na educação do país e não o fez. Enfim, tenho um pouco mais de esperança, quando vejo atitudes corajosas como essa do Ruffato.
Agora vem o prato indigesto do dia… Paula Lavigne foi à gravação do programa Saia Justa do GNT falar sobre a polêmica em torno da associação Procure Saber que representa medalhões da nossa música como Gil, Caetano, Chico, etc, na tentativa de impedir que biografias não autorizadas (só deles?) sejam lançadas no mercado editorial, a exemplo de um ato claro de censura protagonizado, tempos atrás, pelo cantor Roberto Carlos que conseguiu tirar de circulação uma biografia sua. Pois bem, lá pelas tantas, ela vira pra uma das apresentadoras e diz, assim: Bárbara Gancia, você é gay assumida? querendo provocar um certo constrangimento, para justificar o injustificável. "Então, na prática estamos defendendo isso, o direito do artista não se constranger, não ser pego em flagrante"… A interpretação é por minha conta e risco. Acho um absurdo esses artistas (todos meus ídolos), figuras que assumiram o papel de pessoas públicas, a maioria censurada, exilada pelo governo militar, se prestar a uma atitude mesquinha dessas. E a porcentagem sobre o valor dos livros vendidos que querem pra eles? Tenho amigos biógrafos que passam meses ou anos trabalhando arduamente, pendurados em telefones, viajando atrás de uma única informação, enfurnados em bibliotecas… Tenho certeza de que não o fazem por vaidade e todos são respeitados e admirados no meio artístico. A minha imaginação, que não conhece limites, me fez pensar agora que até a divisão do lucro com os artistas abriria precedente pra um certo sensacionalismo, já que estamos no terreno arenoso das contradições… "Fulano, se você contar que comeu Fulano, vai vender mais, pense bem"… Estou ironizando, tão-somente, porque o assunto me parece uma grande piada.
Se a Justiça já tem os seus próprios mecanismos de punição para aqueles que usam de má fé, que difamam alguém, famoso ou não, por que temerem tanto os biógrafos? Não me lembro de nenhum biógrafo da longa Coleção Aplauso ter sido processado, por exemplo. Ou será que ninguém está vendendo tanto assim e quer ganhar mais dinheiro? Ou será que tudo não passa de uma tentativa de chamar atenção para ser notícia no New York Times? Ou será que divago? A impressão que eu tenho é que esses artistas estão dando as costas a própria história que eles mesmos construíram. Uma pena. Um retrocesso. O próprio Caetano Veloso que escreveu um livro brilhante como Verdade Tropical o escreveria, hoje, nessas condições que ele agora defende? Responda, gentilmente, Caetano. Brasil, são tantas as suas contradições, que eu já deixei de te entender. Juro.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

ORGULHO PRÓPRIO








Ter muito dinheiro ou apenas ser feliz? Terminei me deparando com essa questão, no último final de semana, quando um amigo holandês me sugeriu que eu copiasse o estilo de um artista famoso qualquer e só depois, quando tivesse muita grana, investisse em um trabalho mais autoral. Estávamos numa abertura de exposição, numa galeria de Amsterdam, talvez a única autorizada a vender Picasso na Holanda. A mostra intitulada Homenagem a Picasso tinha lá uma série de gravuras do grande artista e também trabalhos de um outro pintor (que o imita descaradamente), cujos quadros estão à venda acima de 10.000 euros. Achei que fosse uma brincadeira dele, embalada por duas ou três taças de vinho branco, mas ele continuou insistindo naquela conversa e até forjou que uma amiga sua concordasse com ele. Como artista, me senti um tanto ofendido e apenas respondi: "Prefiro seguir fazendo o meu trabalho, que embora não seja genial, é o que me orgulha e me faz feliz".
Achei que tinha encerrado aquela discussão ali mesmo, mas no fundo algo estava me incomodando, principalmente porque acabei uma série nova de trabalhos e vou expor alguns deles junto com mais 13 artistas locais, no próximo sábado. Não foi um trabalho fácil por várias razões, desde o fim de um namorinho (desculpa, sou romântico), passando por mudança de casa, a falta de um atelier e uma dor na coluna que vinha e voltava me fazendo parar por várias vezes. Ainda assim, não fiquei me lamentando, não fiquei chorando pelos cantos, tentei driblar os meus limites e fazer o meu trabalho de forma honesta e do jeito que foi possível, porque eu acho, sinceramente, que o mais importante é fazer, insistir, o ato criador exige essa disciplina. Quem tenta tem mais chances de acertar do que quem fica de braços cruzados. Simples assim. E, se eu ficasse pensando em tendências artísticas ou em quem está bombando nas feiras de arte mundo afora, meu trabalho perderia completamente a sua essência, a sua identidade. E olha que ele já é cheio de referências e intertextualidades. Todas propositais. 
Quantos artistas já não fizeram uma releitura da Mona Lisa, por exemplo? E isso não quer dizer que eles perderam subitamente o seu talento ou que esses trabalhos sejam apenas cópias. Em O Rosto-Objeto eu também trato sobre isso. Não quero me apoiar no trabalho maravilhoso dos mestres e muito menos deturpar essas obras famosas, quero apenas mostrar que essas imagens (especificamente rostos) são tão imperativas que atravessaram séculos ou décadas e, mesmo quando eu as trago para um espaço confuso, esquisito, às vezes até sombrio, cheio de pequenos símbolos, onde tinta e papel convivem livremente sobre a tela, elas mantêm a sua força enquanto imagem. E tudo isso tanto pode perturbar o espectador quanto promover uma reação de puro encantamento. O próprio título eu tirei daquele belo ensaio do Roland Barthes sobre o rosto da atriz Greta Garbo. E depois tem a exposição nossa de cada dia nas redes sociais, o rosto assumindo essa função de nos identificar globalmente, para o bem e para o mal… Teve até aquele episódio na Itália, da dona Cecília, uma senhora que sem querer transformou uma tosca "restauração" do rosto de Cristo em piada e… "arte". Por que não? Então como posso jogar todas essas minhas inquietações no lixo para copiar alguém? Faz sentido?
Ser artista não é fácil em nenhum lugar do mundo e essa questão de dinheiro x realização profissional também não é nenhuma novidade. E, depois, seria muita ingenuidade minha buscar uma aprovação das pessoas para legitimar o que eu faço. Pretendo tão-somente continuar fazendo o que me realiza, enquanto eu puder, até quando for possível me expressar e isso me fizer bem. Se atingir as pessoas, melhor. Se não atingir, não tinha que ser. Não vou me lamentar por isso. 
Faz pouco tempo que assisti a uma entrevista do artista plástico brasileiro Alex Fleming, que mora em Berlim e de quem sou grande fã, onde lá pelas tantas ele diz uma coisa que já se tornou uma espécie de segundo Cântigo Negro, pra mim: "O importante é que eu fiz aquela obra, aquela obra é importante pra mim. Se as outras pessoas vão gostar, não vão gostar, não me interessa". E quer saber? Tudo na vida deveria ser desse jeito. Não se trata de egoísmo ou autoconfiança, apenas autenticidade e um pouco de orgulho próprio. E orgulho próprio, claro, é bem melhor que orgulho ferido.