quarta-feira, 6 de junho de 2007

A DIVISÃO

Janete finge lixar as unhas, enquanto Claudionor prepara a mala. Um ignorando a presença do outro. Divórcio implica quase sempre em total ausência de civilidade, mas Claudionor quer provar o contrário sendo o primeiro a falar.
– Faz questão da enciclopédia?
– Não. Você a usa mais do que eu.
– É. Esqueci que você não dá a mínima para aprender coisas novas.
– Está me chamando de burra, Claudionor?
– Foi só uma observação?
– Observação que ofende, não é? (pausa) O que tá fazendo?
– Embrulhando a galinha d’angola. Vou levar a mãe.
– E eu fico só com as filhinhas?
– Só? São três. E depois fui eu que as trouxe de Caruaru.
– Mas a idéia foi minha.
– Tá. Devolvo a mãe. Mas pra não deixar as coitadinhas órfãs.
– Melhor assim.
– Em compensação fico com a tartaruga.
– Por mim tudo bem. Não gosto dela mesmo. Aliás, aquela nossa viagem a Paquetá foi um erro. Que idéia a sua achar que eu me parecia com a Moreninha. Pra começo de conversa, eu nem sou morena.
– Pra você ver como eu estava apaixonado. Mas também não precisava passar a viagem inteira de cara amarrada. (pausa) Pensando bem é melhor deixar a tartaruguinha por aqui. Não vou querer lembrar da sua completa falta de entusiasmo em viagens culturais. Mas o gato não. Presente da minha mãe. Ele tem esse pescoço longo. Diferente.
– Sempre achei esse gato mais parecido com uma girafa que qualquer outra coisa. Pra falar a verdade, nunca entendi esse presente. Você odeia gatos.
– Mas adoro a minha a mãe.
– Pelo menos, nos sobrou alguma coisa em comum. Eu também adoro a velha. Digo, a minha sogra.
– Ex-sogra.
– Isso. Ex-sogra. “Como é bom falar isso. Que mantra delicioso. Ex-sogra. Ex-sogra. Ex-sogra...”.
– Não abro mão do pingüim.
– De forma alguma.
– Por quê?
– Já me afeiçoei a ele. Você sabe como eu sou carente.
– Mas quem comprou fui eu. Paguei uma fortuna.
– Comprou pra depois tirá-lo do seu habitat natural? Anos e anos de National Geographic pra nada?
– Do que você tá falando?
– Da geladeira, oras. Do que haveria de ser? Pingüins só combinam com geladeiras. E a geladeira é minha.
– Eu havia esquecido.
Mais silêncio. É a vez de Janete puxar conversa.
– Você poderia deixar também aquele seu pijama azul de algodão. Sei lá, tá tão velhinho.
– Mas é o meu favorito.
– Quem sabe só ficar com a parte de cima e eu costuro a de baixo... Daí você pode vir pegar quando quiser.
– Você acha?
– É tão civilizado. Vi num filme americano.
– Mas o meu pijama não tá furado.
– Que cabeça a minha, Claudionor! Eu tava pensando era naquela sua calça jeans da idade da pedra, sabe? Aliás, vamos combinar, parece mais um pano de chão. Eu não vou dar conta de consertá-la do dia pra noite. Sou tão caprichosa.
– Aquela calça é assim mesmo, Janete. É uma relíquia. Eu guardo só de recordação. Foi com ela que eu fui ao meu primeiro Rock in Rio.
– Que original.
– Fica com “O Abraço”, tá?
– No começo era “Fica comigo esta noite” e agora só sobrou o “Fica com o abraço”? Que palhaçada!
– Estou falando do quadro do Romero Britto.
– Ah tá, você se refere àquela réplica descarada que você comprou, no centro.
– O que vale é a intenção.
– Eu preferia as suas segundas intenções, logo que me conheceu. É colorido demais. Estou pensando numa decoração mais clean para o nosso apartamento. Retificando: o meu apartamento.
– Ele não cabe na mala.
– E por isso agora é meu? Não aceito esmolas.
– Tá bom. Então, faz o que você quiser com o quadro. Estou mesmo numa fase Beatriz Milhhazes. Difícil não rimar.
Claudionor prepara-se para fechar a mala.
– Já vai fechar o zíper?
– Nem reparei que meu fecho éclair tava aberto.
– Ai, Claudionor, fecho éclair é tão antigo. Estou falando do zíper da sua mala, tonto.
– Desculpa.
– E pára com essa mania de se desculpar por tudo. A única pessoa que tem pena de você é você mesmo.
– Bem, eu já vou indo. Acho que tô levando todas as minhas coisas.
– É melhor conferir. Daqui pra frente, vai ser difícil me achar em casa.
– Só falta o Paul, mas ele também não vai na mala. Nem poderia.
– Como assim o Paul? Paul, o nosso filho?
– Sim. O Paul.
– Você não vai fazer isso comigo, Claudionor. Separar um filho de uma mãe é um crime universal. Inafiançável. Vou ligar pro meu advogado, agora.
– Mas ele é só um cachorro, Janete.
– E daí? Podia ser um camundongo.
– Eu não vou deixá-lo aqui com você.
– E eu não vou deixá-lo ir com você.
Impasse.
– Abro mão dos finais de semana.
– Pra você ir tomar a sua “brejinha” e jogar seu futebolzinho com os seus amigos, enquanto eu fico de babá do cachorro? Não, baby. Não mesmo.
– Tá. Quinze dias com você e quinze comigo.
– Só consigo ser mãe em tempo integral. Claudionor, o Paul acaba de entrar na adolescência, tá namorando a Kelly do 502, logo vai querer constituir família. Já imaginou a bagunça que vai ser a cabeça desse cachorro, se tiver que mudar de casa, terminar o namoro, etc? Puxa, primeiro amor marca pra caramba!
– Cães são flexíveis.
– No cio?
– Não quero saber. Eu não saio daqui sem o Paul e ponto.
– Ótimo.
Claudionor desfez rapidamente a mala e sapecou um beijou em Janete. Paul vendo tudo. Orgulhoso de seus pais.