sexta-feira, 19 de novembro de 2010

ÓDIO E PRECONCEITO

Foto: A.E.

Estive ontem na Balada Literária, um evento maravilhoso organizado pelo escritor Marcelino Freire, em São Paulo, voltei pra casa cheio de novidades, feliz por ter me encontrado e conversado com a escritora Lygia Fagundes Telles e com o meu querido amigo Alcides Nogueira, louco para dividir esse momento de alegria com vocês, mas sou obrigado a deixar esses assuntos mais leves para um próximo post. Depois de assistir àquele vídeo da agressão a um jovem na Av. Paulista, no último domingo, não pude e não quero me calar. É revoltante, para dizer o mínimo! “Batemos porque ele é veado” – teria dito um dos agressores, que alegou ainda que o jovem de 23 anos o teria “paquerado”. Ainda que isso fosse verdade, não lhe dava o direito de fazer o que fez. Quem assistiu àquelas terríveis imagens viu que a agressão foi totalmente gratuita, o ódio pelo ódio. Em dezembro do ano passado, um outro débil mental, Alessandre Fernando Aleixo, de 38 anos, atacou com um taco de baseball o designer Henrique de Carvalho Pereira, de apenas 22 anos, na Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, na mesma Av. Paulista. Depois de quase um ano, em estado vegetativo, o jovem morreu no Hospital das Clínicas. O agressor teria confessado em depoimento que queria atingir o dono da livraria que é judeu. Mais uma vez, o ódio pelo ódio.

Mas, voltando a esse caso mais recente... As investigações apontam que os mesmos agressores, entre eles quatro menores, são responsáveis por mais dois ataques. A justificativa da mãe de um deles foi patética, não sei se vocês leram no jornal: “Foi uma atitude infantil. Ele sai sempre com os amigos e nunca aconteceu absolutamente nada. É um garoto que tem boas notas. Estou constrangida pela situação”. Será que ela queria que o filho chegasse em casa e ainda lhe relatasse, com requintes de crueldade, os ataques aos gays dos quais costumava participar? Tenha, sim, VERGONHA!, minha senhora. Vergonha de ter colocado no mundo o seu manancial de ódio. Eu sempre tive boas notas no colégio e nunca saí à rua para agredir ninguém. Com a mesma idade do seu filho, eu estava lendo o melhor da literatura brasileira, escrevendo e dirigindo peças de teatro, assistindo a ótimos filmes, nunca quis e nem tive tempo de ir pra rua para agredir seja lá quem for. E a que raios de atitude infantil a senhora se refere? Deixe as crianças fora dessa sujeira! Assuma que falhou como mãe, é bem mais fácil de acreditar. Espero que a Polícia de São Paulo, por quem tenho grande respeito, não deixe esses babacas sem uma boa lição. Em pensar que o artista plástico Flávio de Carvalho já andou de SAIA, pasmem agora!, na mesma Av. Paulista, em meados dos anos 50, e sequer levou uma pedrada, uma ovada, tomatada, nada disso. Alguém poderia me responder o que está acontecendo com essa juventude pra ser, assim, tão covarde e burra?

Outro assunto bem chato e que também esteve na pauta de discussões desta semana foi aquele texto assinado pelo chanceler Augustus Nicodemus Gomes Lopes, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das mais tradicionais do país, dizendo que a entidade de ensino que representa é contrária ao projeto de lei que criminaliza a homofobia no Brasil, o PL 122. Nesse manifesto, a Mackenzie sugeria que os alunos se guiassem apenas pelos preceitos da Bíblia, focando principalmente a questão da sexualidade. Legal, hein? Primeiro é aquele linchamento da garota da minissaia, na UNIBAN (lembram?), depois é a volta da Idade Média proposta pela Mackenzie. É o progresso, minha gente! Eu não vi, por exemplo, nenhum texto desse chanceler ou de qualquer outro reitor, fora Mozart Neves Ramos, propondo alguma coisa para melhorar a deficiente educação brasileira. Se os presbiterianos da Mackenzie se acham no direito de dar pitaco nas questões políticas do país – e a péssima campanha eleitoral só serviu para reforçar esse mecanismo –, por que não o fazem em assuntos que lhes dizem respeito, que fazem parte do meio acadêmico? Ou será que algum aluno da Mackenzie não sabe ainda que estuda numa universidade protestante? Por favor, Márcia Tiburi, se pronuncie a respeito. É o mínimo que esperamos de você. Nem que seja para dizer que não compactua com o pensamento do seu patrão, embora pedir as contas você não deva fazer.

Queria colocar na roda também aquele princípio de “censura” ao livro do Monteiro Lobato, “Caçadas de Pedrinho”, mas esse é outro assunto que renderia um post inteiro. Então vou parando por aqui, mas quero reforçar que: ninguém é obrigado a gostar de ninguém, mas tem o dever de respeitar. Não estou aqui para levantar bandeira nenhuma também, nem gosto disso, vocês nunca viram um post meu com esse intuito, mas, se muitas pessoas estão usando também a internet para promover o ódio, nós, pessoas sensatas, de bem, cumpridoras dos nossos deveres, temos a obrigação de repudiar isso. E, quando uma universidade como a Mackenzie se coloca contra um projeto de lei que, aprovado, só ajudaria nesse sentido, é porque nem sequer saímos do atraso. Uma pena. A minha campanha é pelo livre-arbítrio, já! Alguém vai aderir?

terça-feira, 16 de novembro de 2010

MONSIEUR PLAS




Se você assistiu ao filme Bonequinha de Luxo, deve se lembrar daquela famosa cena em que Audrey Hepburn namora as vitrines da Tiffany, na 5ª Avenida, em Nova York. Eu nem tinha assistido ao filme ainda e Audrey nem fulgurava entre as minhas musas favoritas do cinema, quando cheguei a protagonizar algo semelhante. Claro que eu não me pareço nada com a atriz (nem pretendo), nunca estive em Nova York e minha paixão nunca foram as jóias, o que realmente balançam os meus bolsos, fora livros e revistas, são os... chapéus. Isso mesmo. Quem me conhece sabe a paixão que tenho por eles. E foi namorando as vitrines da chapelaria Plas, no baixo Augusta, em janeiro de 2006, que conheci o seu proprietário, monsieur Plas, um francês de 83 anos, muito elegante e simpático, cheio de ótimas histórias

Assim que parei em frente à chapelaria, fui logo atraído por suas vitrines e comecei a desejar aqueles chapéus maravilhosos. Era uma manhã tranquila de verão e as pessoas começavam a ganhar as ruas em direção ao trabalho. As prostitutas e os bêbados, tão comuns naquela parte da Augusta, já tinham se recolhido ou se confundiam agora, trôpegos, entre os passantes. Eu é que continuava lá, olhando fixamente para tantos e variados modelos, seduzido por uma boina que me transportou imediatamente ao filme O Grande Gatsby – aquela versão cinematográfica dos anos 70, com Robert Redford, para o clássico de F. Scott Fitzgerald , por isso nem me dei conta quando a porta se abriu. Era Robert, filho de monsieur Plas, me convidando para entrar e ver de perto qualquer um deles. Fiquei realmente tentado a aceitar o convite.
Mas, depois de uma consulta rápida de preços, disse-lhe que voltaria numa outra oportunidade, que sempre estava envolvido em projetos teatrais e que, certamente, algum dia, um de meus personagens usaria um daqueles lindos chapéus. Robert então, gentilmente, me ofereceu um folheto que contava a história do seu pai. Coloquei o papel na minha mochila e saí deslizando pelo Centro. Chegando em casa, afixei o folheto à porta da minha geladeira. As pessoas sempre me perguntavam quem era o velhinho simpático da foto e eu lhes explicava muito entusiasmado a sua história, mas poucas se interessavam por ela de verdade. Por conta disso, imaginei que aquela reação era um termômetro do reconhecimento das pessoas pelo trabalho de monsieur Plas, que raras apreciavam a sua arte, mas o tempo me provaria que eu estava completamente enganado. Ainda bem.

Em agosto deste ano, abro a Folha de S. Paulo e quem está lá? Isso mesmo. O próprio. Acompanhado de seus dois filhos, Maurice e Robert. Muito sorridente, monsieur Plas estampava uma matéria sobre lugares “intocados” de São Paulo. Corri imediatamente os olhos no texto e descobri que a chapelaria existe, desde 1954, quando exibia a placa “Costureiros de Paris”. Sempre no mesmo lugar. Fugindo da Guerra Fria, nosso personagem chegou ao Brasil pelo porto de Santos, em 1951. O seu irmão, que já morava no país, descrevia o Brasil como um lugar de “muito sol e moças bonitas”. Aliás, para se proteger do sol inclemente dos trópicos, monsieur Plas aderiu aos chapéus, mas foi apenas por influência do ator Tarcísio Meira que passou a produzi-los. Chama atenção o fato dele se orgulhar de nunca ter feito uma liquidação: “Quando você trabalha com arte, acho errado liquidar o que faz”.

Há pelo menos uns dez anos, a chapelaria Plas vem recebendo um público mais jovem, mas a sua clientela é também bastante variada, com destaque para personalidades da música como Edgard Scandurra, Ed Motta, Cauby Peixoto, Nando Reis e até a cantora australiana Kylie Minogue. “Veio aqui uma loirinha bonitinha, simpática. Depois fiquei sabendo que era ela” – deixa escapar o modesto Robert. A modelo Gisele Bündchen também já esteve lá fotografando com Bob Wolfenson e o presidente Lula foi votar, nas últimas eleições, com o seu panamá importado pela chapelaria.

A história de monsieur Plas se confunde com a de muitos outros imigrantes que vieram para o Brasil trabalhar com moda – Estevão Brett, Moises Frajhot, Rudy Davidson, David Liberman, entre outros –, mas com um diferencial, ele não sucumbiu aos modismos e tampouco aos caprichos do mercado – mesmo em momentos de crise – e também nunca esqueceu o passado, seja no modo impecável de se vestir ou na sua rara filosofia que dialoga tão bem com aquele pensamento de Godard: não existe resistência sem memória. E não faz muito tempo que retornei à sua chapelaria, para uma rápida visita. Ele estava concentrado no seu livro de yoga, o jornal repousando ao lado. Queria lhe perguntar se tinha assistido à Alice, o que achava do Chapeleiro Maluco. Não trocamos palavra. Mas também não foi dessa vez que eu compraria o meu tão sonhado chapéu, assinado pelo elegante monsieur Plas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

AO CAIO, COM CARINHO


Pouco antes de morrer, em 1996, alguns amigos presentearam o escritor Caio Fernando Abreu com um computador portátil. Ele ficou fascinado com o presente – uma novidade na época –, mas talvez não imaginasse que, tempos depois, a sua obra seria amplamente divulgada ali. Muitos textos do escritor se multiplicam, todos os dias, nas principais redes sociais e blogs, numa velocidade estonteante. Fenômeno parecido, guardada as devidas proporções, só mesmo o da escritora Clarice Lispector, por quem Caio nunca escondeu ser bastante influenciado. Ela o chamava de “nosso Quixote”, numa referência à sua indisfarçável magreza. Informações como esta estão no livro “Para Sempre Teu, Caio F.”, da jornalista Paula Dip, uma das grandes amigas dele e para quem ele dedicou um dos contos do livro “Morangos Mofados” (1982). Embora seja uma “biografia afetiva”, um testemunho da amizade dos dois, é a primeira vez que se revela a intimidade do escritor dessa maneira. E só por isso já valeria a pena.

O prefácio é assinado pela escritora e dramaturga Maria Adelaide Amaral, que conheceu Caio no final dos anos 70. Ela ganhou dele o apelido de “Levinha” e ele, possivelmente, a teria inspirado o provocante Beny, de “Aos Meus Amigos” (1992). Maria Adelaide relembra os melhores momentos da amizade dos dois e reproduz um trecho de uma carta de Caio que ela nunca esqueceu. Depois de assistir, aos prantos, a peça “De Braços Abertos” (1984), da dramaturga, ele lhe escreveu comovido: “O que acontece comigo é que eu tinha andado de braços fechados. Sem perceber”. Em outro parágrafo da carta, que lamentavelmente não consta da biografia, ele desabafa: “Dá vontade de amar. De amar de um jeito ‘certo’, que a gente não tem a menor ideia de qual poderia ser, se é que existe um”. Esse tom melancólico, tão comum aos textos do escritor, aparece também na narrativa de Paula Dip. A impressão é de que por trás de cada capítulo existem também algumas lágrimas: de saudade do Caio, evidentemente, mas também do apagar das luzes do século 20, daqueles anos “loucos”, “perdidos”, de intensa agitação.

Caio e Paula Dip se conheceram, às vésperas dos anos 80, em redações de revistas e, até a morte precoce do escritor, quase vinte anos depois, nunca se afastaram. Quando a presença se tornava impossível, entrava em cena uma troca afetuosa de cartas. Essa correspondência é o ponto alto do livro, traz gírias da época (algumas criadas pelo próprio escritor), indicações de músicas, citações literárias, referências à Astrologia (Caio era um exímio conhecedor do assunto), roteiros de viagem e, principalmente, muito humor. Antes de refazer a trajetória do amigo, a jornalista recorreu à irmã dele, Cláudia Abreu, que lhe abriu “a casa e o coração” e permitiu que ela tivesse acesso a recordações que só a família possui. Entrevistou também os muitos amigos e colegas de Caio, revirou o seu baú particular, reconstruiu a época com recortes de jornais e revistas e ainda contou um pouco da sua própria história. O resultado não poderia ser melhor: um texto leve, preciso, inconfundível na sua abordagem pop e com tudo para agradar à crescente legião de fãs do escritor.

Caio F. (como assinava aquelas cartas) nasceu na cidade de Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 1948. Ainda jovem se transferiu para Porto Alegre e, lá, publicou seus primeiros contos. Assim como Fernando Pessoa, também ingressou, mas não concluiu o curso de Letras. Trabalhou como jornalista em importantes veículos de comunicação, mas estava sempre em dificuldades financeiras e nunca teve pouso certo. Em 1973, cansado do clima repressor no Brasil, foi para a Europa e só retornou depois de um ano. De volta ao país, se estabeleceu mais ou menos em São Paulo, cidade com quem mantinha uma relação de amor e ódio. Depois de uma breve temporada na França, em 1994, quando viu despontar sua carreira internacional, retornou a Porto Alegre, mas dessa vez já estava debilitado pela AIDS, doença que o venceria no dia 25 de fevereiro de 1996. Deixou uma obra repleta de personagens marcados pela paixão e que fazem sucesso até hoje.

A escritora paulistana Márcia Denser acredita que a morte prematura dele, aos 47 anos, o privou de transcender a questão do gênero, na sua ficção. É inevitável que esse tipo de questionamento não esbarre na inútil discussão sobre a existência de uma literatura gay que o aprisione. Difícil prever também os novos rumos da ficção de um escritor como ele, não só pela sua personalidade moldada a “Cântico negro”, de quem só ia aonde lhe levavam os seus próprios passos, mas também porque Caio era o seu texto, no sentido cartesiano da palavra, como defende o editor Pedro Paulo de Sena Madureira. É preciso ler a biografia para não confundir o escritor – incansavelmente comprometido com a sua literatura de cunho universal – com o personagem Caio F., debochado, que usava expressões como “de salto alto e decote profundo”, atento a banalidades, ferino, etc. O que fica para a posteridade é somente o escritor. E como ele não vai voltar, cabe agora aos seus leitores atender a um de seus desejos mais recorrentes: amá-lo por alguma coisa que escreveu.

Resenha e ilustração para o site Aplauso Brasil - IG

domingo, 17 de outubro de 2010

NÃO HÁ NADA DE NOVO

A política não é a coisa mais importante, é apenas a que mais sai nos jornais. Exatamente porque os donos dos jornais são políticos. O problema político é impedir que os homens de negócios tomem o poder. Nietzsche



Bocejo. Antes mesmo da campanha eleitoral começar, vim aqui bastante entusiasmado registrar as minhas expectativas, porque, de fato, esperava uma “corrida ao ouro”, empolgante, com ampla discussão de programas de governo e com uma participação calorosa dos internautas. Claro que também torcia por uma briguinha ou outra entre os candidatos, afinal faz parte do jogo político, do folclore das campanhas, mas não esperava esses debates mornos, sem graça, com o verbo no passado imperando. Nem Proust chegaria a tanto. Os internautas continuam fazendo sua parte. Recebo, diariamente, e-mails pró e contra os dois candidatos. As redes sociais das quais faço parte viraram palanques disputadíssimos, mas ainda estou em cima do muro, curtindo a minha mudez “verde”. Para os que me acusam de pessimista, digo apenas que conservo aquela expectativa de final de novela das oito (aquelas de antigamente, claro), esperando uma reviravolta a qualquer momento. Aliás, infelizmente, nem posso assistir à segunda reprise de Vale Tudo, mas já li que a novela está “bombando”, nas madrugadas. Essa novela do Gilberto Braga esteve no ar sempre em momentos políticos decisivos. Em 1988, no ápice do processo de redemocratização e, em 1992, no bota-fora do ex-presidente Collor. Voltou agora, em 2010, nas (?)...

E nem a alta popularidade do presidente Lula tem assegurado à candidata petista uma folga nas pesquisas. Muito pelo contrário. Nada está decidido até o momento. Ninguém pode cantar vitória. Mesmo assim, o discurso dela ainda está amparado nas conquistas sociais do governo atual. Só falta mesmo, depois de exausta, desabafar: “Vocês não entenderam ainda? Eu sou o Lula, amanhã”. Não ficarei nada surpreso, mas, ainda assim, não me convencerá, porque ela não tem o carisma indisfarçável do presidente. Sem contar que tem tanta dificuldade para sorrir quanto um Rubem Braga. E o que pra mim é o mais grave, a sua imagem ainda é muito dura para um país que historicamente está ligado a figuras femininas afetuosas, leiteiras: à mãe lusitana que nos concedeu o bem maior da “descoberta” e da civilização, à mãe África que nos deu seus “trabalhadores” fortes e inesgotáveis e, finalmente, à Nossa Senhora Aparecida a quem os cristãos católicos clamam sempre, na hora do desespero. E foi para a Igreja que Dilma se voltou, quando desmentiu, às vésperas do primeiro turno, ser favorável à descriminalização do aborto. De feminista poderosa se transformou numa carola do século passado. O aborto ganhou a gravidade de uma peste negra e esteve nos discursos mais hipócritas. E não me espantaria saber que milhares de aborteiras, país afora, correram para algum confessionário, receosas de que não chegariam ao Céu.

O candidato tucano José Serra, certamente, deve ter lido “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”. Conseguiu conquistar o apoio da classe-média alta, tem feito a cabeça de boa parte da classe artística e é visível que ganhou a simpatia dos principais meios de comunicação. E isso, para o bem ou para o mal, conta muito. Até decisivamente. A história está aí para provar. A campanha dele passou a ser mais agressiva, o seu discurso até sugere mais segurança, mas também tem lá suas falhas. Defende, por exemplo, o ensino técnico, com ênfase, mas não consegue explicar o colapso no ensino público do estado que governou. Não admite que o seu partido errou ao criar e insistir na “progressão continuada”. Atira para todos os lados com promessas salvadoras. O grevista de amanhã pode ser o seu eleitor, no dia seguinte. E com o apoio de um famoso líder messiânico, uma espécie de Flávio Cavalcanti do protestantismo brasileiro, não deve se livrar de uma saia justa com o seu eleitorado mais “moderninho”. Pra mim, esse tipo de associação soa meramente eleitoreiro, oportunista. Política e religião nunca deveriam se misturar. É muito poder concentrado. Não vi também com bons olhos o “santinho” do tucano sendo distribuído com o carimbo da Igreja Católica. Espero que isso não seja um recado a la “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.

O sono chegou. E não vou poder acordar só depois do segundo turno. Amanhã, as pessoas não terão nada de extraordinário para comentar sobre o debate. Ninguém com ânimos exaltados, na padaria. Nem vivemos mais esses tempos radicais, não é mesmo? Nietzsche tem toda razão, “a política não é a coisa mais importante, é apenas a que mais sai nos jornais”. E eu não comprarei os jornais, amanhã. Talvez releia “Diretas Já!”, do Henfil, e comemore o único consolo possível: “Vivemos numa democracia!”. Ou quem sabe ouça “Imagine”. Bem alto. Mas insisto, não há nada de novo.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

PRIMAVERA

Um cheiro sufocante de rosas enchia de peso o ar, rosas malditas na sua força de natureza doida, a mesma natureza que inventava as cobras e os ratos e pérolas e crianças – a natureza doida que ora era noite em trevas, ora o dia de luz. Esta carne que se move apenas porque tem espírito. C.L.




Meu pai ainda insistiu. Eu disse que não. Era uma tontura passageira e eu logo estaria encarando a cidade de igual para igual. Não teria problemas. Ele viu que eu tropeçava em mim mesmo. Cambaleava. Também não estava bêbado, se é que alguém pensou nessa posssibilidade. Efeito talvez de alguns remédios. Não, também não eram balas dessas que quase paralisam as pessoas em festas intermináveis. Ele quis que eu fosse de carro. Ou chamasse um táxi. Mas não era tão longe. Até me seguiu para ver se eu mudaria de ideia. Insisti que ele voltasse. Lembrei-me de Judas dizendo “todos passam a mão na sua cabeça”. Declinei o convite na hora. Não por causa de Judas, claro. Mas por achar que ainda tinha alguma dignidade. Meu pai me levaria de carro aonde quer que eu fosse, porque a sua bondade não conhece limites. Mas voltando... Não. Eu não gosto de dar trabalho, trago comigo essa coincidência com a escritora Lygia Fagundes Telles. Numa entrevista à Clarice Lispector, acho que para a saudosa Manchete, Clarice logo lembrou que Lygia nunca dava o menor trabalho. Eu sou assim também. Tenho pavor de que me levem nas costas.

Hoje choveu um pouco. E à noite, quando saí, principalmente. Saio quase sempre à noite. Caía uns pingos tímidos que nem me convenceram a levar um guarda-chuva. Então tomei um ônibus. Lotado naquele horário. Estava tão imerso em coisas “ruins”, com o sono acumulado dos últimos dias, que mal notei quando uma senhora me pediu licença. E quando ela o fez e eu vi que estava com uma criança, no colo, tive um susto. Uma criança absurdamente linda. E aquela criança provocou em mim uma imensa felicidade. O meu ou o seu nome poderia ser Felicidade. Aliás, quando volto para comprar aquele Katherine Mansfield? Espero que ainda esteja lá, à minha espera. Mas o livro que fui buscar foi “Noites Tropicais”, do Nelson Motta, emprestado gentilmente pelo querido Tássio Marques, a pretexto de uma pesquisa para um monólogo que me encomendaram. Ele me indicou tudo certo, número, rua, prédio, mas eu me perdi. Eu quase sempre me perco à noite. É como se a escuridão gostasse de brincar de cabra-cega comigo. Como se ela visse algum prazer infantil nisso. E eu quase sempre concedo. Eu entrava numa rua, saía por outra, supermercados tão parecidos, postos de gasolinas, a chuvinha intermitente... Parei exausto e atônito, numa esquina. Coloquei o meu capuz para me proteger. Levei as mãos nos bolsos e constatei que esqueci o celular. Ali na rua, a minha impressão era de que estava em algum lugar totalmente desconhecido, Pompeia ou Xangai, por exemplo. Xangai não, porque não fazia aquele calor absurdo. Vendo-me um tanto perdido, confuso, um rapaz se aproximou. Um bonito rapaz. Moreno. E notei que ele usava brincos, porque tenho memória visual. Talvez quisesse me conduzir pelo braço, mas poderiam achá-lo muito estranho. Me contentei em perguntar-lhe onde ficava aquele endereço. Ele me disse que a duas quadras e que dali mesmo eu já poderia ver o prédio. Agradeci humildemente e segui para o meu compromisso. Duas mocinhas seguiram o mesmo trajeto. O rapaz sumiu na paisagem. Vi porque ainda o olhei por detrás. Uma mocinha conversava com a outra as maiores banalidades dessa idade, os prêmios da MTV, se não me engano. Houve um momento em que uma delas quis saber da outra: “você sabia que já é primavera?”. Levei outro susto. Eu havia me esquecido completamente! E aquilo me encheu de esperança e pensei até em passar em uma floricultura e comprar uns girassóis ou violetas, gérberas cor de fogo... Margaridas. Cravos que é a flor do meu signo e do poeta Martins Fontes. Tudo menos rosas. Porque tem espinhos.

domingo, 19 de setembro de 2010

APEGO

A minha intenção não era postar nada ficcional. Não por enquanto. Sobretudo depois de "Aquele e o Outro". Aliás, muitíssimo obrigado pelos comentários. Estava me sentindo oco, mas como essa história "Apego" me veio, assim, de súbito, achei que não teria por que não postá-la. Até muda um pouco o foco do Blog, enquanto preparo outros textos menos pretensiosos. E também é bem curtinha. Um roteiro de curta-metragem, para ser bem sincero. E um pouco mórbido, já adianto, mas a mensagem é certeira, fala de apego a coisas materiais, vaidade e falsas amizades. Assunto na crista da onda. Não sei. Algo pra se pensar. A imagem linda que o ilustra é de Joannis Mihail Mouda. O texto é dedicado ao meu amigo Paulo H. Moura, por tudo que ele tem passado silenciosamente em São Paulo.


"No amigo deve vislumbrar-se o melhor inimigo. Deve ser você a glória do seu amigo, entregar-se a ele tal qual você é? Pois é por esse motivo que o manda para o inferno!" Nietzche

01 INT. QUARTO. NOITE.

Penumbra. Lindauro abre um guarda-roupa muito antigo. Quase não há nada dentro. Para um instante. Decide-se. Pega o paletó preto. Novo. Ainda no cabide, o coloca sobre si mesmo. Mira-se no espelho lateral. Namora-se. Madalena, enrolada num chale preto, vem entrando...

MADALENA

...Dona Celeste mandou pedir o paletó.

LINDAURO

...Vou usá-lo no velório. Aliás, eu já ia me trocar.

MADALENA

...Ela falou que na casa do Eliaquim não tem uma roupa que preste.

LINDAURO

...E eu com isso?

MADALENA

...A família dele é muito pobre. E vem gente da Lagoa do Morro.

LINDAURO

...Essa gente vive chorando miséria. Encomenda-se uma mortalha e pronto.

MADALENA

...Mas vocês não eram tão amigos?

LINDAURO

...Eu trabalhei muito para comprar este paletó. Só usei no casamento da Amália. (T) Olha, Madalena. Não fica tão bem em mim?

MADALENA

...Deus dá outro. Quando a gente morre, não leva nada disso.

LINDAURO

...Ah, tá bom. Então não precisa do meu paletó.

MADALENA

...Bem, recado dado.

Madalena deixa o quarto. Lindauro agarra-se ao seu paletó.

02 INT. SALA. NOITE.

Velório. Alta madrugada. A sala ainda cheia. É possível ouvir os sapos coaxando, lá fora. Dona Custódia e seu Malaquias, pais de ELIAQUIM, na cabeceira do caixão. Expressões apagadas. Muito dignos. Eleaquim, no caixão, afogado em flores miúdas. O paletó lá. Novíssimo. Contrastando com a sua pele pálida de jovem morto. Mulheres no rosário. Um cachorro distrai-se com uma mosca. Num canto, Lindauro. Inconsolável. De vez em quando, alguém se aproxima para as condolências de praxe.

ALGUÉM

...Meus sentimentos, meu filho.

Lindauro lança um olhar mortiço sobre o caixão e desaba a chorar.

ALGUÉM

...Ele descansou. Descansou.

03 INT./EXT. SALA/CEMITÉRIO. MANHÃ.

O caixão é fechado. O cortejo segue cemitério adentro. As pastorinhas entoam cânticos religiosos. O coveiro encaixa o caixão na gaveta e, depois, arremata a tampa com o cimento fresco. Alguém deposita algumas flores. Um a um, deixam o local. Lindauro é o último a sair. Ainda lança um olhar fulminante para a sepultura e, em seguida, vai embora.

04 EXT. CEMITÉRIO. CALADA DA NOITE.

Lindauro dá os últimos retoques no reboco. De vez em quando, se assegura de que não vem viva alma. Trabalho concluído. Deita fora a colher de pedreiro. Resgata o seu paletó que repousava num túmulo próximo. Sacode a poeira, veste-se e vai embora. Finalmente feliz.

FIM

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

AQUELE E O OUTRO

“Ternura não é a palavra certa, mas explica melhor essa mistura de gratidão em relação ao corpo de onde se tira o prazer, de doçura que se funde quando o prazer escorre, de lassitude física, mesmo de nojo que nos afoga e alivia, que nos afunda e nos faz vagar de tristeza enfim; e essa pobre ternura, emitida um pouco como um raio cinzento e doce, continua a alterar delicadamente os simples relacionamentos físicos entre machos”. Jean Genet

Foi tudo muito rápido. Da saída do metrô foram direto para um hotel, na rua Augusta. Hotel vagabundo, sem néon na fachada, com uma escadaria escura e dedos gordurosos pelas paredes. Queriam compensar a falta de conforto com, no mínimo, um baseado, mas só foram se lembrar deste, quando já estavam lá dentro. “Uma carreira de pó nos esgotaria imediatamente. Ou cairíamos lado a lado, nus, prisioneiros de viagens muito loucas” – pensou Aquele, o mais imaginativo. O Outro era de uma lucidez irritante. Em qualquer lugar, conversava sobre política e a penúria de viver com um salário mínimo. E recitava uns poemas muito estranhos. Ferreira Gullar talvez. Aquele não prestava atenção em nada disso, só queria acreditar que transar era mesmo muito urgente. Sempre ouvia a voz do amigo lhe incitando a essas investidas: “Você precisa dissolver a sua tristeza em sexo”. Quem sabe trocasse o analista por noites inteiras de pegação no Centro, em saunas, banheiros públicos, praças, embaixo de pontes, ou em praias, motéis, drive-ins, carros, parques, clubes, etc e etc. Seria perfeito viver assim, camuflar com gosto a própria tristeza, dizer adeus aos remédios para dormir.

Seguro da sua privacidade, o Outro foi logo tirando a roupa e se atirou desajeitado na cama. O lençol imediatamente se desprendeu e acabou por revelar um colchão velho e com um forte cheiro de mofo. Aquele ainda ficou olhando para o espaço minúsculo, feio, sem uma única gravura nas paredes, imaginando quantas pessoas já teriam passado por ali, quantos amantes não se renderam ao prazer naquele mesmo lugar, quantos homens não teriam traído suas esposas...

– Eu disse que era podrinho. Não disse? – interrompeu o Outro, com um sorriso nos lábios.

– É que eu nunca vim a um lugar como este. Me lembrou um filme chamado “A Bela da Tarde”.

– Tira logo a roupa.

Tão diferentes. Aquele morava num ótimo apartamento em Higienópolis, estudou no Rio Branco, depois Mackenzie, filho de pais rotarianos, com os dois pés na burguesia paulistana. O Outro se escondia em qualquer lugar do Centro, na São João, na Marechal, em bares ou mesmo embaixo do Minhocão. Aquele era branco, rosto suave, ligeiramente afetado e muito romântico. O Outro era mais maduro, jeitão de antigos comunistas, moreno, barba por fazer, cabelos crespos e sempre querendo mudar o mundo.

– Eu vou ao banheiro...

Não houve tempo. O Outro se aproximou cantando uma música de Chico que Aquele ainda não conhecia: “Vem meu menino vadio, vem sem mentir pra você, vem, mas vem sem fantasia, que da noite pro dia, você não vai crescer”... E Aquele nem notara o sexo do Outro já crispado, sanguíneo, exuberante. Então se apoiou no tronco forte e úmido dele e lambeu obediente as suas mãos viscosas, antes que elas libertassem vorazes os botões da sua camisa. Mas alguma coisa lhe incomodava. O Outro agora apalpava suas intimidades com força e lhe dava leves mordidas no rosto. Aquele até tentava corresponder com algum interesse, mas não conseguia se entregar totalmente.

– Só um minuto – gemeu.

– Não está gostando?...

Num impulso, Aquele se trancou no banheiro. E logo percebeu que ali também não havia nenhum luxo. Apenas azulejos muito antigos, um papel higiênico pela metade, uma pia de porcelana branca e um pequeno sabonete sobre duas toalhas de banho. O espelho oval estava manchado. Tudo muito sem graça. Pobre. Bege demais. Aquele então abriu a torneira e deixou que a água transbordasse nas suas mãos em forma de concha. “Não, não é repugnância. Talvez medo. Mas é preciso realizar o ato. Com ou sem dor. ‘Ela toca a doçura do sexo, acaricia a novidade desconhecida’. Acho que é ‘O Amante’. Agora não sei”... E banhou o próprio rosto. Da cama, o Outro quis saber se estava tudo bem.

– Sim, já estou indo – respondeu Aquele, apressado.

– “Quem bate à minha porta tem que aceitar o que ofereço”. – Afinal, você quer ou não quer? – gritou impaciente.

– Precisava me refrescar – se justificou.

Para não aborrecer o Outro, Aquele tomou logo o seu lugar na cama e se posicionou para agradá-lo. Antes, porém, lhe fez uma única exigência: apagar as luzes. E mesmo não se sentindo único, querido ou especial, se entregou sem demonstrar um laivo sequer de tristeza. O Outro então puxou para si o corpo delicado que se oferecia e, minutos depois, completamente saciado, caiu como um javali faminto que acaba de devorar uma plantação inteira de milhos. Seguiu-se um breve e incômodo silêncio, interrompido apenas quando o Outro se levantou e foi direto para o banho. Sozinho, perplexo diante do próprio abandono, Aquele fez que nada entendeu, mas estava lá, estampada em seu rosto, a sua profunda decepção. Logo ele que tinha tão viva, na memória, uma imagem de Mapplethorpe que sempre lhe causava comoção, a de um rapaz numa posição bastante vulnerável, à espera de ser penetrado ou abandonado depois de – adorava essa ambigüidade –, mas sabia que ela despertava nas pessoas mais risos, pelo ridículo da cena, do que compaixão. Aquele nunca riu daquela fotografia e a piedade que ela sempre lhe causou só não era maior da que agora sentia por si mesmo. No banheiro, uma ducha fresca deslizava agradavelmente pelo corpo do Outro, enquanto ele buscava na memória a letra inteira de “Dia Branco”. E bastava errar uma nota ou um verso da canção, para começar tudo de novo: “...Se branco ele for, esse pranto... Esse pranto?... Ou esse tanto de amor?... Se você vier, pro que der e vier, comigo...”.

Aquele, que se sentia agredido na carne e na alma, se lembrou novamente de “O Amante” e agora lhe vinha à cabeça um trecho inteiro do livro, vírgula por vírgula: “Não há sujeira, a sujeira está encoberta, tudo é levado pela torrente, pela força do desejo”. Repetia a si mesmo, na tentativa de não se arrepender do que fez. Mas não adiantou. Estava com raiva. Cansado de tanto desperdício de prazer sem ternura. Dos que se satisfazem e vão embora. De bocas estranhas, imundas, que beijam sem nenhuma paixão. De homens igualmente estranhos e imundos que, quase sempre, lhe ferem sem nada dizer. “Até quando vai ser assim, meu Deus? Até perder o gosto pelo prazer? Até não existir mais prazer?” – disse, dentro de si, cheio de revolta. E depois começou a se virar na cama tentando esmagar os próprios pensamentos e reter uma lágrima que insistia em brotar.

– Você não vai se lavar? – disse o Outro, saindo do banheiro.

A pergunta chegou Àquele atravessada, infeliz, como um desses desaforos que só machucam. “Por que não me perguntou ‘posso cuidar de você’? Lavar??? Por Deus!!! Como se eu fosse uma cueca velha. A sua cueca velha e encardida. Esse é o tipo de homem que eu recebo dentro de mim. Eu sou mesmo um idiota com i maiúsculo...” – e continuaria ainda se punindo em silêncio.

– Estou falando com você – interrompeu o Outro, confuso.

– Com licença. Vou tomar o meu banho – disse sublinhando o “meu banho”, entre seco e irônico.

O Outro não entendeu nada e nem se esforçou para fazê-lo, queria logo se espalhar na cama e dormir, dormir, dormir. Já embaixo do chuveiro, enquanto a água corria sem pressa, Aquele fechou os olhos e se imaginou dentro de uma incrível banheira, dessas de capa de revista, repleta de detergente. Odiaria, sobretudo, acordar no dia seguinte e ainda encontrar algum vestígio da baba viscosa do Outro. Do seu líquido seminal. “Me senti uma mercenária do sexo. Até elas devem receber mais carinho do que eu” – dramatizou. Enquanto isso, o Outro dormia pesado. E roncava. Alto. E era patética a sua cara de homem feliz, com a sua triste arrogância sigilosa.

Aquele até reconhecia que o caráter urgente do sexo lhe facilitava alguns equívocos amorosos, mas dividir novamente a cama com o Outro não fazia o menor sentido, ultrapassava a sua tolerância à falta de carinho e gratidão para com as pessoas. Só lhe restava então uma única alternativa: sair dali imediatamente. E, em cinco minutos, não mais do que isso, ele ganhou as ruas de São Paulo outra vez. O vento agora acariciava o seu rosto. As pessoas passeavam felizes, ao seu lado. Ele próprio esquecera que era sexta-feira à noite. Que se chamava Paulo Ribeiro de Carvalho. Que uma cama macia e dois travesseiros o aguardavam, ali perto. Um golden retriever também. E aquela sensação de alívio logo se transformou na alegria de saber-se livre do Outro. Pensou ainda em sair dançando. Ou entrar no Athenas e pedir um drinque. Ou um suco de melancia com gengibre e sem açúcar. E, em casa, agiu como se nada tivesse acontecido. Tomou um novo e demorado banho, vestiu o seu confortável pijama, entrou em seus sites de relacionamentos favoritos, consultou a agenda cultural para o final de semana, planejou almoçar com os amigos, diminuiu o ar condicionado... Sentiu-se exausto e adormeceu. E nem se lembrou de tomar o seu remédio para dormir.