segunda-feira, 17 de setembro de 2007

A PONTE E O ABRAÇO

A intenção era ser um suicídio simples, honesto, silencioso. Ninguém saberia da minha morte e eu não faria questão nenhuma de anunciá-la. Qualquer indulgência, principalmente a última, seria muito humilhante. E depois uma morte-anunciada presume uma não-morte. O fato é que eu queria mesmo morrer e com o mínimo de dignidade. Havia motivos. Alguns muito aparentes e outros tantos ocultos em uma vida cheia de fracassos. Então por que continuar a não dar em nada? A não ir a lugar nenhum? Na verdade, eu haveria, sim, de chegar a algum lugar, para o bem ou para o mal. Acabaria o grande mistério. O grande temor. “Erguer a cortina e passar para o outro lado, eis tudo”.
Antes de sair de casa, ainda relanceei os olhos na direção dos móveis, livros, das flores murchas sobre a mesa, da cama ainda desfeita e, lá fora, do que restou do jardim. Tudo já morto. Tranquei a porta. Pacientemente. Confesso que a única coisa material que temi deixar para trás foi aquela porta. Gosto tanto de portas e janelas. Abertas ou fechadas elas são sempre essenciais. Eu nunca fui essencial. Depois de atravessar a rua, segui para a Ponte da Saudade. Era irônico morrer logo ali, num lugar tão óbvio, mas não havia outro melhor num raio de cinco quilômetros, o máximo que o meu corpo suportava caminhar. O caminho era de chão batido. Toda vez que algum carro passava, deixava aquele rastro vermelho e serpenteado na estrada. De vez em quando eu parava e enchia os bolsos com pequenas pedras. Uma tosse aqui e outra ali. De volta à minha marcha, estranhei a minha mudeza de pensamentos. Melhor assim. Oco.
A ponte já estava dando na vista. O sol indo embora. Eu indo embora. Precisei me certificar de que não vinha nenhum carro, nenhum tropeiro ou vivalma. Agora já estava muito perto de me expulsar do mundo, longe dos olhares piedosos daqueles que me cercavam com negligência. Com o coração repleto de um não querer viver, cheguei à beira do imenso vão que circundava a ponte. Cairia em queda livre e o meu corpo tocaria o rio lá embaixo, sem grande esforço. Houve tempo apenas para o sinal da cruz. De repente, surge uma voz melodiosa atrás de mim: “Com a sua licença. Posso lhe pedir um favor?”. Muito sério, voltei meu corpo em direção àquela criatura que aparecera não sei como, vinda não sei de onde. Ainda esfreguei bem os olhos para ter certeza do que via. O ser era baixote e com uma cara muito descorada, olhos de um verde quase transparente, os cabelos alourados e a pele muito alva como a de um anjo. Trajava uma roupa muito simples de algodão e uma mochila nas costas dava-lhe um ar irresponsável de viajante. Um menino na idade. Meio desconfiado, fui logo lhe pedindo para ser breve.
- Não faça cerimônia porque tenho pressa. Antes me diga apenas uma coisa, você vem de onde? Ainda agorinha olhei pra tudo quanto é canto e não vi sombra.
- Acabo de chegar da cidade, já andei bem umas duas léguas.
- Procurando trabalho?
- Não senhor.
- O que quer da minha pessoa?
- Um abraço.
Quando ele me disse aquilo, assim, numa golfada, tive ganas de mostrar-lhe as minhas forças, mas me contive porque não se bate em doente de cabeça. Idéias do meu pai, seu Sebastião, que Deus mantenha embaixo de glória.
- O amarelo tá brincando comigo? Que história mais besta é essa de abraço? – rebati.
- Abraço é tão bom.
- Eu não sou desses por aí não, viu? Honro muito as minhas vestes.
- Nem pensei...
- É bom mesmo, porque senão iríamos rolar os dois por este chão e só eu haveria de me levantar vivo.
E ainda havia a desagradável sensação de estranheza ao vê-lo ali a suplicar-me um mísero abraço. Um encontro gratuito de corpos, mas que desnudaria a minha fragilidade para o mundo inteiro. “O rei está nu”. Quando, enfim, nos enlaçássemos, talvez a grandeza do meu espírito se restituísse ou então, consciente de que era inútil ser salvo, eu continuasse a me abandonar para sempre. Querendo fugir do meu compromisso, tentei investigar de onde vinha aquela querência por um abraço, mas nenhuma de suas respostas me foi satisfatória.
- Não lhe conheço. Não é meu parente. Não é criança – neguei três vezes.
- E tem idade certa, grau de parentesco ou precisa ser criança para receber um abraço? – ele me contradisse automaticamente.
- É melhor você não insistir, porque estou ficando nervoso.
Diante das minhas negativas freqüentes, o sujeitinho decidiu seguir a sua viagem. Eu é que já tinha me apegado a ele. E reparando nos meus bolsos cheios de pedras, ele achou que eu colecionasse os pequenos seixos. Aquela sua ingenuidade vulgar é que o confundia com um desses muitos sonhadores de estrada. Confesso que ainda lhe disse qualquer coisa de atravessado, no que uma grande culpa logo se desenvolveu dentro de mim. Resolvi então pôr termo naquele sofrimento, apalavrando o tal abraço, mas que ele não se aproveitasse além do permitido. Sorte houve que ninguém passou por aquele caminho, naquela hora e mais meia. A noite também já se achegara.
- Não serve um aperto de mão? – ainda perguntei.
- Não senhor. Apertos de mão são cumprimentos involuntários e abraços são atos de generosidade. Se o senhor acha que eu não mereço...
Não havia mais tempo de voltar atrás. O abraço foi dado e eis o milagre. Perdoem-me a traição da minha memória, mas lembro-me apenas dos meus olhos se rendendo às lágrimas, um arfar de peito e um sorriso franco e largo desenfreando-se na minha boca. Ainda pude ver, enquanto caí estendido no chão, um pequeno halo de luz suave que inquietou os meus olhos e de repente sumiu. Mais nada. Quando tornei a mim, olhei em volta procurando o ser baixote, mas ele já havia desaparecido. E só então compreendi que eu estava nascendo de novo.