domingo, 26 de agosto de 2007

HISTÓRIAS DE QUINTAL

Eu tinha três pares de anos, não mais do que isso. Lembro-me com precisão. Era a primeira vez que recebíamos uma visita mais longa em nossa casa. “Uma tia distante de São Paulo” – nos informou nossa mãe. Falou com aquele jeito prático que só ela tem. Fomos então brincar no quintal, com a sensação de que ali havia dente de coelho. Falavam baixo como se escondessem uma calamidade. Não houve tempo para grandes investigações. A tia distante de São Paulo, que eu notaria anos depois ser muito parecida com a poetisa Cora Coralina, já havia chegado. Depois das apresentações formais, ficamos à espera de algum presente. Ela não trazia nenhum brinquedo, nenhum chocolate, nada daquelas coisas que as crianças tanto gostam e sonham ganhar. Apenas a sua presença miúda, a sua voz cansada, quase gemida, que às vezes pareço ouvir no escuro. Um dos quartos sem janela lhe foi reservado. Ordens foram dadas para não entrarmos mais lá. Não queria perder o momento tão esperado de abertura da mala. Fiquei à porta observando curioso para saber o que sairia de lá. Havia ainda uma esperança. A última. Quem sabe nossa mãe pudesse ganhar um par de brincos. Ou um corte de tecido. Ou sapatos novos. Ela sentou-se na cama, o olhar secreto, as mãos vacilantes ao libertar da mala as botas negras de cano alto, as roupas de festa, as pequenas jóias e o que mais me chamou atenção, uma linda boneca. A tia distante de São Paulo já era velhinha e na minha imaginação perturbadora era inadmissível que ela ainda brincasse de bonecas. Uma boneca limpinha, ornada com o seu vestido branco de rendas e no seu rosto redondo uns olhos muito azuis. Fez um carinho na boneca e a deixou de lado. Nossa mãe me confidenciou recentemente que a tia distante de São Paulo tinha “problemas de cabeça”. Naquele tempo, não se ousava dizer certas palavras, principalmente doenças. O simples fato de pronunciá-las era motivo de muita temeridade ou para os mais supersticiosos, de muita desgraça. Tempos de muito silêncio. Soube também que ela foi abandonada em nossa casa, porque não dera certo na vida. Quanta maldade privá-la de estar onde ela realmente se sentia bem, na cidade grande. Éramos uma família remediada que gozava de boa paz financeira, mas nem todo conforto do mundo poderia proporcionar a ela a tranqüilidade de espírito de que precisava. Nunca presenciamos um ataque de fúria da sua parte. Na verdade, ela nunca demonstrou ausência completa ou parcial de sua lucidez. Aparentemente era uma pessoa normal. Apenas contava algumas histórias mirabolantes, o que não vejo nada de errado. Gostava também de pintar as maçãs do rosto com um acentuado carmim. A boca sempre muito vermelha. Cabelos curtos penteados para trás, sobressaindo os brincos de pressão. Uma figura pictórica saída de um quadro de Toulousse Lautrec. O tempo passou e a tia distante de São Paulo ganhou um novo destino, a casa de um de seus irmãos, num sítio muito humilde e distante da cidade. Os dias que antecederam a sua partida foram os mais lúgubres que já presenciei. O clima em nossa casa tornou-se pesado e não houve uma só pessoa que não aspirasse aquela tristeza. Como se sentisse a violência que se aproximava, ela foi ficando cada vez pior. Sem dúvida, começava ali o seu calvário. Inventaram mil histórias para convencê-la a entrar no carro. Eu estava na rua vendo tudo. Era uma manhã de sol calmo. Impassível na minha ingenuidade de criança, mas, por dentro, muito indignado. A tia distante de São Paulo não quis entrar no automóvel, resistiu com certa moderação, mas resistiu. As malas já estavam lá dentro. Teriam colocado a boneca de olhos azuis? Nunca soube. Não houve um erguer de voz. Gestos expansivos. Nada. Muito silenciosamente ela se deixou conduzir até o seu lugar no interior do carro. Não sem antes chamar pelo meu nome. Uma súplica. Cravando ainda em mim aqueles seus olhos misteriosos. Nunca os esqueci. E partiu. A tia distante de São Paulo só voltaria a nossa casa, poucos meses depois. Quando, enfim, morreu.