sexta-feira, 20 de julho de 2007

DIAS DE INVERNO


De volta a São Paulo depois de um curto período, no Guarujá, onde pude repensar coisas importantes que norteiam a minha vida. Uma espécie de auto-exílio produtivo também. Escrevi um curta-metragem já esperado e “O Reencontro” que está postado aqui. Li também muitos livros. Cada qual com as suas particularidades, mas só recomendo mesmo: “Luísa” e “Aos meus amigos”, da Maria Adelaide Amaral (aliás, a próxima minissérie da Globo é baseada em “Aos meus amigos”); “O Ladrão de Sonhos”, do Ivan Ângelo (contos formidáveis); “Um sopro de vida – pulsações”, da Clarice Lispector (fundamental para quem pretende escrever profissionalmente ou não) e “Olhai os Lírios do Campo”, do Erico Verissimo (simples, poético, tocante). Trilha sonora nada invernal. “FUTURESEX/LOVESUNDS”, de Justin Timberlake. Porque é preciso também brincar de ser feliz.

Dia desses, sonhei que um avião se despedaçava, no quintal da minha avó. Acordei ofegante, mas, em seguida, suspirei aliviado. Sonho é sonho. Novamente dormindo, dessa vez com a TV ligada, sou surpreendido com a notícia da tragédia com o avião da TAM. Fiquei e ainda estou perplexo. Aliás, acho que ninguém deveria perder a sua capacidade de indignação, sobretudo nesses momentos. Fica aqui a minha solidariedade às famílias das vítimas.

MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA

O REENCONTRO

Marcelo a esperava com certa tranqüilidade. De cima do Morro do Maluf parecia ainda mais desafiador. Sentia-se poderoso ali. Percebeu que a pedra estava escorregadia. Recuou. Não era bobo. Ventava muito forte. Marcelo tinha predileção por dias assim. “Que belezinha deve ser Londres” – sonhava. Olhou para o céu manchado de um cinza muito escuro. Alegrou-se. Tirou do bolso um cigarro, o mais vagabundo. Acendeu com dificuldade. Tragou. Sentiu-se mais relaxado. Consultou o relógio e nenhum sinal de Letícia. “– Talvez, tenha desistido” – pensou em voz alta. Imediatamente voltou atrás: “– Não. Não é do feitio dela”. Não se passou dois segundos e Letícia chegou. “– Falou no diabo...” – e não houve tempo de pensar em mais nada. Vinha vaporosa em sua direção, num vestido lilás, estampado de rosas brancas. Começou uma chuva miúda, triste e constante.
– Não posso demorar muito. Só vim mesmo porque ainda te considero. Saí de casa feito uma doida. Só fui perceber que tinha esquecido o guarda-chuva, quando já estava no ônibus. Aproveitei que estava por aqui mesmo e fui dar uma espiadinha no mar. Coisa rápida. As ondas tão violentas! Se me atrasei, foi pouco. E que lugarzinho este, hein? Tive que subir em dois pulos. No meio da encosta, uns pedreiros começaram a mexer comigo. Fiquei assustadíssima. Ah, desculpa. Eu e minha mania de falar pelos cotovelos, não é? (seca) O que você quer comigo?
– Você.
– Por favor, Marcelo. Você não me chamou até aqui pra me dizer isso, não é? Francamente.
– Não.
– Ah, fico mais tranqüila. Então desembucha de uma vez, porque daqui a pouco vai escurecer e eu preciso voltar pra casa. Você sabe que eu não tenho condução própria. Ainda. O Mourão prometeu tirar uma moto pra mim. Seminova, pra começar. Eu nem deveria tá te contando essas coisas, porque você pode achar que é pra te fazer ciúme, mas eu juro que não é a minha intenção. (desejando mudar de assunto) Só, ontem, fui me dar conta de que estou namorando, pela segunda vez, um cara com a letra M. Que coincidência, não é?
– Verdade.
Letícia olhou em redor, contemplativa.
– Lembro como se fosse hoje a primeira vez que você me trouxe aqui, naquele fusquinha do seu amigo. Transamos e tudo. Eu era tão boba. A subida foi um sacrifício, mas depois valeu a pena. Tenho até um pouco de saudade daquela época, sabia? Você pode não valer um centavo, mas tem uma pegada! O Mourão que não me ouça, ai meu Deus! Essa chuvinha fina também me deixa nos nervos. Fica esse chove não molha. Ô, São Pedro, se decide né, meu nego? Por que você também gosta tanto de chuva, hein? Que troço estranho.
– Porque ela só vem quando quer. Não é intrometida como o sol.
– Sempre essa mania de ser diferente. Você não muda mesmo.
– Você quer que eu mude?
– Sinceramente? Não. Eu só dou pitaco agora naquilo que é meu. Portanto cada um na sua, meu filho. E eu tô muito bem com o Mourão, obrigada. (desejando mudar de assunto) Nem te conto. Ele vai comprar um carrinho de lanche pra minha mãe. (orgulhosa) É um cara de posses, sabe como é. Dona Zefina tá numa alegria só. Não sabe mais o que fazer pra agradar o genro. Sim, porque nosso casamento é dia menos dia. Fato consumado. No duro.
– Tô sabendo.
– A Claudete acha que a gente tem que ostentar um pouco. Fazer um churrasco maior, com muito mais cerveja, chamar os garotos do Quebra Galho pra dar uma animada, sabe como é? É aquela história, casamento não é todo dia.
– Também acho.
– Só no cartório mesmo. Nada contra casamento na igreja. Nem sou também uma alma perdida. É que eu não quero muitos rapapés, sabe? (com uma ponta de tristeza) Não fica, assim, Marcelo. Eu sei que você queria estar no lugar dele. Mas há males que vem para o bem. O meu caso, por exemplo. Sofri no começo, mas depois veio a compensação. O Mourão é tão... Tão humano. Aprendi isso numa novela. Achei bonito...
Marcelo já não suportava aquela lengalenga. Uma grande raiva foi lhe dominando o espírito.
– Que cara é essa, Marcelo? Pára com isso! Tô ficando nervosa. Com medo...
Letícia ainda lhe estendeu uma mão com humildade. Balbuciou alguma coisa. Provavelmente um último pedido. Uma súplica de socorro. Tudo em vão. Ela reencontraria o mar dali a poucos segundos e Marcelo ainda ficou, lá em cima, rindo com aquele seu jeito ruim de ser. Como um monstro moderno. E, já satisfeito, voltou pra casa. Como se nada tivesse acontecido.

A HORA DE CLARICE


Meu primeiro contato com um texto de Clarice Lispector ocorreu, na minha adolescência. Costumava tomar para mim os livros de literatura do meu irmão mais velho e, num deles, estava o maravilhoso conto “Uma Amizade Sincera”. Li. Reli. Nunca mais parei. Até hoje é um dos textos que mais me tocam. E depois vieram: “Laços de família”, “A hora da estrela”, “Água-viva”, “Uma Aprendizagem ou O livro dos prazeres” e “Um sopro de vida – pulsações”. Fui lendo cada um, sem muito critério, dependendo exclusivamente do meu estado de espírito. Já reservei a “A paixão segundo G. H.”, para um momento de tranqüilidade. E, claro, pretendo continuar descobrindo o mundo de Clarice. Não tenho pressa. Quando soube que o Museu da Língua Portuguesa iria fazer a exposição “Clarice Lispector – A hora da estrela”, fiquei exultante de felicidade. Orgulhoso. E não tenho a menor vergonha de confessar esses pequenos atos gratuitos e apaixonantes da vida. Aproveitei para ir num sábado (sim, porque é de graça). Dia de sol como poucos. Na entrada da Estação da Luz, havia muitos ônibus de excursões. A minha sensação de orgulho ficou ainda maior. A fila não me desanimou. Paciência é uma virtude que cultivo com muito carinho. Meia hora depois, já estava lá dentro. A entrada é emocionante. Penumbra. Tecidos transparentes com lindas imagens de Clarice sobrepostos a algumas de suas frases. Essas frases foram selecionadas pelo poeta Ferreira Gullar. A intenção talvez seja reproduzir visualmente o mistério por traz da “personagem” Clarice Lispector e da sua obra. Não resisti e fiz duas fotos dessa sala (claro que escondido dos muitos monitores). Não me perguntem como. Quando me dei conta, já estava com as duas imagens na câmera e um sorriso de orelha a orelha. E não vou ficar contando tudo porque perde a graça, o legal é ir lá, descobrir os detalhes e se encantar. Mas só para deixar quem não foi com água na boca. Cartas, manuscritos, documentos e fotos da escritora estão ao alcance de todos (pelo menos, de nossos olhos). Dedique um tempo para ler algumas cartas, sobretudo as que ela enviava ao filho, nos Estados Unidos. São textos emocionantes. Belos. Repletos de ternura. E também assistam a entrevista, feita pouco antes de sua morte, em 1977, pelo jornalista Julio Lerner, para o programa Panorama, da TV Cultura. Um dia, ainda terei uma cópia desse vídeo. É de arrepiar. A voz. O olhar indecifrável e penetrante. A elegância. Sou radicalmente contra o tabagismo, mas até o modo como ela fumava possui um certo charme. Há trechos dessa entrevista, no site oficial da escritora
www.claricelispector.com.br.

“REVELAÇÕES” DE CLARICE.

“Vi a Esfinge. Não a decifrei. Mas ela também não me decifrou”.

“Escrever uma só linha basta para salvar o coração”.

“Com uma vida pobre (e qual é a vida rica?) com a vida pobre eu me salvo dela através do imaginário”.

“Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo”.

“Quem escreve ou pinta ou ensina ou dança ou faz cálculos em termos de matemática, faz milagre todos os dias”.

“Em escrever eu não tenho nenhuma garantia. Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer”.

“Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa”.

“Nem tudo que escrevo resulta numa realização, resulta mais numa tentativa”.

“Sinto que cheguei quase à liberdade. A ponto de não precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco: cheio do maior silêncio”.