quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

AQUELA NOITE DE NATAL


A minha versão para o conto “Missa do Galo”, de Machado de Assis

Nunca pude esquecer aquela noite. Faz dez anos, mas parece que foi ontem. Contava dezessete e ela trinta, embora aparentasse bem menos. Um primo distante da minha mãe, o Meneses, acomodou-me em sua casa, no Rio de Janeiro, pelos idos de 1861 ou 1862. O seu sobrado era modesto, mas não muito, ficava na rua do Senado, onde vivia além dele, a sua esposa Conceição, a sogra dona Inácia e mais dois escravos velhos e obedientes. Em plena noite de Natal, Meneses saiu de casa para dormir com a “outra”, uma senhora separada do marido, espécie de amor avulso que muito lhe agradava e que Conceição fingia não saber. Sobre isso Dona Inácia, às vezes, lhe dizia algumas verdades, no que ele respondia com um muxoxo ordinário e ainda lhe mostrava as contas pagas. Ao final, todos pareciam conviver muito bem com os seus crimes.
Não sou um bom exemplo de cristão e antes era bem menos do que agora, mas uma missa do galo na Corte tinha lá os seus encantos. Combinei com um amigo de irmos juntos à igreja, naquela noite. Não dormiria até a hora marcada, mas, caso ele não aparecesse, é porque não agüentara o sono. Assim foi feito. A casa estava muito silenciosa, todos já haviam se recolhido. Para dar fim ao tédio, peguei um desses romances de capa e espada e me fiei a ler. Os minutos voavam e, de repente, ouvi dar onze horas. Assustei-me apenas com a chegada repentina de Conceição.
– Ainda não foi?
– Não. Ainda não deu meia-noite.
– Ah... Que paciência!
Fechei o livro e ela foi se aproximando devagarzinho até se sentar numa cadeira de frente pra mim. A minha primeira reação foi ficar vermelho, embora não deva ter notado, porque estávamos apenas à meia luz.
– A senhora me desculpe se fiz barulho.
– Não, bobagem. Acordei por acordar.
Mentira. Ela não parecia ter dormido nada. Os seus olhos estavam ainda mais nítidos e tinham um não sei quê de mistério que tanto me atraíam.
– Que paciência esperar pelo vizinho. O que estava lendo? Ah, o romance dos Mosqueteiros.
– Sim, é muito bonito.
– Gosta de romances?
– Gosto.
– Já leu A Moreninha?
– Do Dr. Macedo? Já, mas prefiro aqueles que tenham mais aventuras como O Guarani.
– Eu já gosto dos mais levinhos, mas tenho lido tão pouco ultimamente. Não me sobra tempo.
A conversa não tinha a menor gravidade, mas Conceição me ouvia com tanto interesse e, de vez em quando, ainda passava a língua pelos lábios para umedecê-los. Refez-se o silêncio. “Talvez esteja aborrecida!”, pensei comigo.
– D. Conceição, já é quase meia noite e eu...
– Não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio, são onze e meia. Tem tempo.
– Sendo assim...
– Permita-me apenas um conselho, não se torne um papa missas. Não fica bem um menino como você ser chamado de carola.
– Não, não. O meu interesse é tão-somente porque nunca fui a uma missa do galo aqui na Corte.
– Ora, é a mesma missa da roça. No fundo, são todas iguais.
– Penso que a daqui há de haver mais luxo, mais gente... Desculpe, devo lhe parecer muito caipira, não é?
– Estou gostando. Continue.
Ao se acomodar na cadeira, num movimento leve de corpo, deixou-me ver metade dos seus braços. Uma visão inesquecível. Cabe aqui uma confissão íntima, caro leitor. Essa visão não era tão nova pra mim, posto também que não fosse comum. O fato é que a presença de Conceição começava a despertar em mim uma inquietação perturbadora. Quando alteava um pouco a voz, ela reprimia-me.
– Fale baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição que me enchia de gosto. Passamos então a cochichar outros assuntos. Não satisfeita, ela deu a volta à mesa e veio sentar-se ao meu lado, no canapé. Nesse momento, vi escapar do seu longo roupão uma nesga de pés tão mimosos.
– É que mamãe tem o sono muito leve. Se acordasse agora, custaria a dormir.
Pensei em sentar na cadeira que ficava ao lado, mas não achei jeito. Ela foi mais rápida e pousou a sua mão sobre a minha. Não posso dizer quanto, mas ficamos por algum tempo calados. Nesses arroubos da juventude, qualquer fração de segundos pode durar uma eternidade. No entanto, tentei manter os olhos fixos na parede, alternando apenas entre uma ou outra gravura antiga, ao passo que já estava pingando de suor e talvez tremesse um pouco também. Conceição então me virou pra si.
– Suas mãos estão geladas, meu anjo.
E foi aproximando o seu rosto ao encontro do meu como quem suplica por um beijo. Não posso dizer que não devaneava. Subitamente ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, seguida de uma voz: “Missa do galo! Missa do galo!”.
– Aí está o seu companheiro, disse ela levantando-se irritada. Vá que hão de ser horas. Adeus.
– Naturalmente.
– Vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Até amanhã.
E, com o mesmo balanço gracioso de corpo, Conceição enfiou pelo corredor adentro, pisando bem de mansinho até sumir entre os outros aposentos.

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