Pouco antes de morrer, em 1996, alguns amigos presentearam o escritor Caio Fernando Abreu com um computador portátil. Ele ficou fascinado com o presente – uma novidade na época –, mas talvez não imaginasse que, tempos depois, a sua obra seria amplamente divulgada ali. Muitos textos do escritor se multiplicam, todos os dias, nas principais redes sociais e blogs, numa velocidade estonteante. Fenômeno parecido, guardada as devidas proporções, só mesmo o da escritora Clarice Lispector, por quem Caio nunca escondeu ser bastante influenciado. Ela o chamava de “nosso Quixote”, numa referência à sua indisfarçável magreza. Informações como esta estão no livro “Para Sempre Teu, Caio F.”, da jornalista Paula Dip, uma das grandes amigas dele e para quem ele dedicou um dos contos do livro “Morangos Mofados” (1982). Embora seja uma “biografia afetiva”, um testemunho da amizade dos dois, é a primeira vez que se revela a intimidade do escritor dessa maneira. E só por isso já valeria a pena.
O prefácio é assinado pela escritora e dramaturga Maria Adelaide Amaral, que conheceu Caio no final dos anos 70. Ela ganhou dele o apelido de “Levinha” e ele, possivelmente, a teria inspirado o provocante Beny, de “Aos Meus Amigos” (1992). Maria Adelaide relembra os melhores momentos da amizade dos dois e reproduz um trecho de uma carta de Caio que ela nunca esqueceu. Depois de assistir, aos prantos, a peça “De Braços Abertos” (1984), da dramaturga, ele lhe escreveu comovido: “O que acontece comigo é que eu tinha andado de braços fechados. Sem perceber”. Em outro parágrafo da carta, que lamentavelmente não consta da biografia, ele desabafa: “Dá vontade de amar. De amar de um jeito ‘certo’, que a gente não tem a menor ideia de qual poderia ser, se é que existe um”. Esse tom melancólico, tão comum aos textos do escritor, aparece também na narrativa de Paula Dip. A impressão é de que por trás de cada capítulo existem também algumas lágrimas: de saudade do Caio, evidentemente, mas também do apagar das luzes do século 20, daqueles anos “loucos”, “perdidos”, de intensa agitação.
Caio e Paula Dip se conheceram, às vésperas dos anos 80, em redações de revistas e, até a morte precoce do escritor, quase vinte anos depois, nunca se afastaram. Quando a presença se tornava impossível, entrava em cena uma troca afetuosa de cartas. Essa correspondência é o ponto alto do livro, traz gírias da época (algumas criadas pelo próprio escritor), indicações de músicas, citações literárias, referências à Astrologia (Caio era um exímio conhecedor do assunto), roteiros de viagem e, principalmente, muito humor. Antes de refazer a trajetória do amigo, a jornalista recorreu à irmã dele, Cláudia Abreu, que lhe abriu “a casa e o coração” e permitiu que ela tivesse acesso a recordações que só a família possui. Entrevistou também os muitos amigos e colegas de Caio, revirou o seu baú particular, reconstruiu a época com recortes de jornais e revistas e ainda contou um pouco da sua própria história. O resultado não poderia ser melhor: um texto leve, preciso, inconfundível na sua abordagem pop e com tudo para agradar à crescente legião de fãs do escritor.
Caio F. (como assinava aquelas cartas) nasceu na cidade de Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 1948. Ainda jovem se transferiu para Porto Alegre e, lá, publicou seus primeiros contos. Assim como Fernando Pessoa, também ingressou, mas não concluiu o curso de Letras. Trabalhou como jornalista em importantes veículos de comunicação, mas estava sempre em dificuldades financeiras e nunca teve pouso certo. Em 1973, cansado do clima repressor no Brasil, foi para a Europa e só retornou depois de um ano. De volta ao país, se estabeleceu mais ou menos em São Paulo, cidade com quem mantinha uma relação de amor e ódio. Depois de uma breve temporada na França, em 1994, quando viu despontar sua carreira internacional, retornou a Porto Alegre, mas dessa vez já estava debilitado pela AIDS, doença que o venceria no dia 25 de fevereiro de 1996. Deixou uma obra repleta de personagens marcados pela paixão e que fazem sucesso até hoje.
A escritora paulistana Márcia Denser acredita que a morte prematura dele, aos 47 anos, o privou de transcender a questão do gênero, na sua ficção. É inevitável que esse tipo de questionamento não esbarre na inútil discussão sobre a existência de uma literatura gay que o aprisione. Difícil prever também os novos rumos da ficção de um escritor como ele, não só pela sua personalidade moldada a “Cântico negro”, de quem só ia aonde lhe levavam os seus próprios passos, mas também porque Caio era o seu texto, no sentido cartesiano da palavra, como defende o editor Pedro Paulo de Sena Madureira. É preciso ler a biografia para não confundir o escritor – incansavelmente comprometido com a sua literatura de cunho universal – com o personagem Caio F., debochado, que usava expressões como “de salto alto e decote profundo”, atento a banalidades, ferino, etc. O que fica para a posteridade é somente o escritor. E como ele não vai voltar, cabe agora aos seus leitores atender a um de seus desejos mais recorrentes: amá-lo por alguma coisa que escreveu.
7 comentários:
Caio será eternamente Caio ... nada mais a dizer ...
bjux
;-)
Texto leve que nos convida a conhecer um pouco das sutilezas de um homem que nos deixou uma memóravel obra ... saimos da sua alma e vamos enxergá-lo por fora !
Abração
Belo texto
;*)
Luis.
Eu fui apresentado ao Caio por "Aqueles Dois", que coincidentemente, recebi de dois amigos, um do Maranhão, e outro de Minas Gerais.
Se Caio pediu que o amasse por algo que escreveu, posso dizer que o amo por muito.
Porque existe essa forma de amar quem escreve determinas coisas.
Abraços.
Luiz
Como sempre um belo texto sempre relembrando a cada um de nós grandes mestres que por vezes ficam até esquecidos.
Hoje depois de um bom tempo afastado do blog venho matar as saudades nesse teu cantinho especial. Belo trabalho em homenagem ao Caio.
Abraço saudoso
Luis, bom te ler como sempre, a forma e o conteúdo, sempre adequado, na polidez e conhecimento
Sem a pedância de muitos, ainda que sofisticadamente delicado...
Parabéns pela publicação!
Quanto ao Caio, conheci seus textos na blogesfera, não o conhecia e como seus textos são densos e verdadeiros, lindos r muito fortes.
Nunca entendo que nossos grandes poetas, sofram tanto e ficam tão deprimidos que acabam morrendo por conta da imunudeficiência. Como o Cazuza, Renato Russo,Caio Abreu, entre outros...
Vc sabe me explicar porque será que o homosexualismo gera tamanha depressão nestes genios?
Vc conhece o blog:
http://salveacasadocaiofernandoabreu.blogspot.com/
Apareça!
(Citei vc na minha ultima postagem)
Bjs
Conheci o Caio F. através de uma amiga e foi amor a primeira leitura - tal qual o amor por este blog.
Olá, Luis Fabiano! Poxa... Que vontade de ler morangos mofados!
Essa relação do Teatro com a Literatura e vice versa, é sempre algo muito profícuo.
Desculpe a ignorância, mas se é só a verdade que liberta... Você saberia me dizer se a Claudia Abreu, irmã de Caio, é a atriz?
Ótimo esse termo: “Moldada a Cântico Negro”.
Gostei muito da resenha. Visito uma média de 10 blogs todos os dias, e posso atestar que um dos autores mais citados é Caio F. Abreu, o qual confesso vir conhecendo, e amando, durante essas blogagens que faço.
Parabéns por sua postagem. Um deleite. Abraço!
“Para o legítimo sonhador não há sonho frustrado, mas sim sonho em curso” (Jefhcardoso)
http://jefhcardoso.blogspot.com
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