Meu pai ainda insistiu. Eu disse que não. Era uma tontura passageira e eu logo estaria encarando a cidade de igual para igual. Não teria problemas. Ele viu que eu tropeçava em mim mesmo. Cambaleava. Também não estava bêbado, se é que alguém pensou nessa posssibilidade. Efeito talvez de alguns remédios. Não, também não eram balas dessas que quase paralisam as pessoas em festas intermináveis. Ele quis que eu fosse de carro. Ou chamasse um táxi. Mas não era tão longe. Até me seguiu para ver se eu mudaria de ideia. Insisti que ele voltasse. Lembrei-me de Judas dizendo “todos passam a mão na sua cabeça”. Declinei o convite na hora. Não por causa de Judas, claro. Mas por achar que ainda tinha alguma dignidade. Meu pai me levaria de carro aonde quer que eu fosse, porque a sua bondade não conhece limites. Mas voltando... Não. Eu não gosto de dar trabalho, trago comigo essa coincidência com a escritora Lygia Fagundes Telles. Numa entrevista à Clarice Lispector, acho que para a saudosa Manchete, Clarice logo lembrou que Lygia nunca dava o menor trabalho. Eu sou assim também. Tenho pavor de que me levem nas costas.
Hoje choveu um pouco. E à noite, quando saí, principalmente. Saio quase sempre à noite. Caía uns pingos tímidos que nem me convenceram a levar um guarda-chuva. Então tomei um ônibus. Lotado naquele horário. Estava tão imerso em coisas “ruins”, com o sono acumulado dos últimos dias, que mal notei quando uma senhora me pediu licença. E quando ela o fez e eu vi que estava com uma criança, no colo, tive um susto. Uma criança absurdamente linda. E aquela criança provocou em mim uma imensa felicidade. O meu ou o seu nome poderia ser Felicidade. Aliás, quando volto para comprar aquele Katherine Mansfield? Espero que ainda esteja lá, à minha espera. Mas o livro que fui buscar foi “Noites Tropicais”, do Nelson Motta, emprestado gentilmente pelo querido Tássio Marques, a pretexto de uma pesquisa para um monólogo que me encomendaram. Ele me indicou tudo certo, número, rua, prédio, mas eu me perdi. Eu quase sempre me perco à noite. É como se a escuridão gostasse de brincar de cabra-cega comigo. Como se ela visse algum prazer infantil nisso. E eu quase sempre concedo. Eu entrava numa rua, saía por outra, supermercados tão parecidos, postos de gasolinas, a chuvinha intermitente... Parei exausto e atônito, numa esquina. Coloquei o meu capuz para me proteger. Levei as mãos nos bolsos e constatei que esqueci o celular. Ali na rua, a minha impressão era de que estava em algum lugar totalmente desconhecido, Pompeia ou Xangai, por exemplo. Xangai não, porque não fazia aquele calor absurdo. Vendo-me um tanto perdido, confuso, um rapaz se aproximou. Um bonito rapaz. Moreno. E notei que ele usava brincos, porque tenho memória visual. Talvez quisesse me conduzir pelo braço, mas poderiam achá-lo muito estranho. Me contentei em perguntar-lhe onde ficava aquele endereço. Ele me disse que a duas quadras e que dali mesmo eu já poderia ver o prédio. Agradeci humildemente e segui para o meu compromisso. Duas mocinhas seguiram o mesmo trajeto. O rapaz sumiu na paisagem. Vi porque ainda o olhei por detrás. Uma mocinha conversava com a outra as maiores banalidades dessa idade, os prêmios da MTV, se não me engano. Houve um momento em que uma delas quis saber da outra: “você sabia que já é primavera?”. Levei outro susto. Eu havia me esquecido completamente! E aquilo me encheu de esperança e pensei até em passar em uma floricultura e comprar uns girassóis ou violetas, gérberas cor de fogo... Margaridas. Cravos que é a flor do meu signo e do poeta Martins Fontes. Tudo menos rosas. Porque tem espinhos.
13 comentários:
Luis, como você esquece da primavera, rapaz? rs.
Poxa, eu fiquei preocupado com você, reparei que não estava muito bem, fiquei meio tímido de perguntar. Espero que melhore, se cuide. Se eu soubesse, poderia ter te levado em um local mais perto para você, após o meu expediente.
Meu pai era igualzinho ao seu, me levava para todos os cantos, cheio de preocupação. Pais são tudo de bom.
Olhar do poeta, que percebe, nos momentos do cotidiano, a vida e a felicidade em pequenas verdadeiramente grandes coisas do dia-a-dia.
O carinho do pai, a criança linda, um rapaz espírito amigo que percebe o outro e oferece ajuda, e finalmente a primavera, vencendo as pequenas banalidades das adolescentes.
Nesse dia, o poeta (me passou isso no texto) estava mesmo sendo espreitado pela felicidade em cada canto, em cada encontro, num jogo não de esconde-esconde, mas de olha-como-podemos-todos-ser-felizes!
Pelo texto, gostoso de ler, mas antes de tudo pela sensibilidade. Cultivar um espírito de felicidade, desde jovem revela um espírito sensível, especial, e provavelmente também um pai especial.
Parabéns!
Tenho lido ótimos textos sobre primavera ultimamente, não sei porquê. Abraços!
De uma conversa fútil, o despertar de algo tão bom: a primavera!
Eu não entendi o início do seu texto, confesso... acho que o acabar de despertar sozinho nesta casa vazia e neste domingo chuvoso ainda me atrapalha a capacidade de "colher" (falemos em termos apropriados a estação) o significado...
Mas adorei as imagens!
ABraços,
Adorei a postagem, suas fotos são superpoéticas e o texto está tão gostoso de ler. Não esqueci do convite que lhe fiz (infelizmente tive uns contratempos que me impossibilitaram de continuar as entrevistas de domingo)mas ainda o quero como entrevistado, se assim o quiser,ok? Abraços e linda semana.
Olá Luis,
Vc anda mesmo sumido, espero realmente que nada de grave esteja lhe acontecendo...
Mesmo nestes momentos de confusão e quando se sente perdido, como escreves bem!
Gosto tanto de te ler...
Em muitas situações olhamos e não vemos, principalmente as cores, a luz, a vida brotando, o perfume no ar... Porque estamos em neblina, imersos e parados, esperando algo acontecer para passar e abrir po tempo... Somente o tempo e a fé nos fazem ver as cores meu amigo!
Muito carinho à vc, desejo que fique bem, seja o que for!
Oi, Luis Fabiano...
Há qto tempo, não? Ando na corrida, mas em breve lerei seu blog com o carinho que ele merece, novamente.
Tem um selo pro seu blog lá no meu... Pega lá hehe
Beijos
Clênio
www.lennysmind.blogspot.com
www.clenio-umfilmepordia.blogspot.com
Adorei a introdução com a passagem de Clarice. As fotos não lindas, que nem a primavera também é.
Abraços
Feliz Primavera, por aqui estamos quase no Inverno e as rosas que encontro não sei porquê perderam os picos e o aroma, as floristas arrumam-nas em jarras nas vitrines mas são como bijuteria,belas mas falsas.
Por isso aproveite todos os momentos, acorde a Alma e aprecie as flores como o Principezinho que amou a rosa apesar dos espinhos. Bjos
Fabiano, saudades de você. É sempre uma delícia ler o que você escreve. Às vezes nem tanto pelo que você conta e sim, como você o faz.
Grande abraço!
Lindas fotos. E a primavera?? Ahhh, aqui em casa está tudo voltando: a hera já está recobrindo o muro, o Zezinho (meu bonsai de 12 anos)já está renascendo depois da fúria de minha tosa radical. Com a reforma, meu jardim se reduziu a um canteiro que corre pela muro, mas mesmo assim, a Primavera veio. Ela tem urgências que atropelam nosso humor, que ignoram nosso inverno interior. E os pássaros? Esses parecem "pilhados" em vôos insanos, cantando sem parar. As vezes os flagroem atitudes libidinosas....que delícia! rs....
Por onde andas?
Abraços
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