domingo, 19 de setembro de 2010

APEGO

A minha intenção não era postar nada ficcional. Não por enquanto. Sobretudo depois de "Aquele e o Outro". Aliás, muitíssimo obrigado pelos comentários. Estava me sentindo oco, mas como essa história "Apego" me veio, assim, de súbito, achei que não teria por que não postá-la. Até muda um pouco o foco do Blog, enquanto preparo outros textos menos pretensiosos. E também é bem curtinha. Um roteiro de curta-metragem, para ser bem sincero. E um pouco mórbido, já adianto, mas a mensagem é certeira, fala de apego a coisas materiais, vaidade e falsas amizades. Assunto na crista da onda. Não sei. Algo pra se pensar. A imagem linda que o ilustra é de Joannis Mihail Mouda. O texto é dedicado ao meu amigo Paulo H. Moura, por tudo que ele tem passado silenciosamente em São Paulo.


"No amigo deve vislumbrar-se o melhor inimigo. Deve ser você a glória do seu amigo, entregar-se a ele tal qual você é? Pois é por esse motivo que o manda para o inferno!" Nietzche

01 INT. QUARTO. NOITE.

Penumbra. Lindauro abre um guarda-roupa muito antigo. Quase não há nada dentro. Para um instante. Decide-se. Pega o paletó preto. Novo. Ainda no cabide, o coloca sobre si mesmo. Mira-se no espelho lateral. Namora-se. Madalena, enrolada num chale preto, vem entrando...

MADALENA

...Dona Celeste mandou pedir o paletó.

LINDAURO

...Vou usá-lo no velório. Aliás, eu já ia me trocar.

MADALENA

...Ela falou que na casa do Eliaquim não tem uma roupa que preste.

LINDAURO

...E eu com isso?

MADALENA

...A família dele é muito pobre. E vem gente da Lagoa do Morro.

LINDAURO

...Essa gente vive chorando miséria. Encomenda-se uma mortalha e pronto.

MADALENA

...Mas vocês não eram tão amigos?

LINDAURO

...Eu trabalhei muito para comprar este paletó. Só usei no casamento da Amália. (T) Olha, Madalena. Não fica tão bem em mim?

MADALENA

...Deus dá outro. Quando a gente morre, não leva nada disso.

LINDAURO

...Ah, tá bom. Então não precisa do meu paletó.

MADALENA

...Bem, recado dado.

Madalena deixa o quarto. Lindauro agarra-se ao seu paletó.

02 INT. SALA. NOITE.

Velório. Alta madrugada. A sala ainda cheia. É possível ouvir os sapos coaxando, lá fora. Dona Custódia e seu Malaquias, pais de ELIAQUIM, na cabeceira do caixão. Expressões apagadas. Muito dignos. Eleaquim, no caixão, afogado em flores miúdas. O paletó lá. Novíssimo. Contrastando com a sua pele pálida de jovem morto. Mulheres no rosário. Um cachorro distrai-se com uma mosca. Num canto, Lindauro. Inconsolável. De vez em quando, alguém se aproxima para as condolências de praxe.

ALGUÉM

...Meus sentimentos, meu filho.

Lindauro lança um olhar mortiço sobre o caixão e desaba a chorar.

ALGUÉM

...Ele descansou. Descansou.

03 INT./EXT. SALA/CEMITÉRIO. MANHÃ.

O caixão é fechado. O cortejo segue cemitério adentro. As pastorinhas entoam cânticos religiosos. O coveiro encaixa o caixão na gaveta e, depois, arremata a tampa com o cimento fresco. Alguém deposita algumas flores. Um a um, deixam o local. Lindauro é o último a sair. Ainda lança um olhar fulminante para a sepultura e, em seguida, vai embora.

04 EXT. CEMITÉRIO. CALADA DA NOITE.

Lindauro dá os últimos retoques no reboco. De vez em quando, se assegura de que não vem viva alma. Trabalho concluído. Deita fora a colher de pedreiro. Resgata o seu paletó que repousava num túmulo próximo. Sacode a poeira, veste-se e vai embora. Finalmente feliz.

FIM

9 comentários:

Átila Goyaz disse...

O apego as coisas materiais.
Nossa, que ilustração!
Parabéns!

Joel Vieira disse...

Apego... faz pensar no que realmente se deve apegar nessa vida!!!
Abraços

Paulo Roberto Figueiredo Braccini - Bratz disse...

Fantástico ... fantástico ... fantástico ...

Luiz consegui ver todo o curta aqui lendo este roteiro ... incrível ...

bjux

;-)

BAU DO FAEL disse...

excelente texto...

sabe que não vejo em Lindauro um apego a coisas materiais..não sei, acho que ele queria o paletó por pertence-lo, por deixa-lo de auto estima...

Fantastico texto...

Já escrevi sobre amizade, um dia te mando os textos...

Vc escreve muito bem.

Abração.

Alex disse...

Caramba!
Bom roteiro... uma vez mais, confirma bom escritor!
Desnecessário dizer que você tem muito talento, LF!
Sobretudo, é muito gostoso ler o que vc escreve. Fala de coisas profundas de uma meneira muito especial.
É um comportamento tão venerado e banalizado esse (o apego e valorização do material), que só mesmo mostrando um caso tão esdrúxulo para passar o recado!
Ou, talvez, seja o talento mesmo o responsável, único. Como com Aquele e o Outro, uma história tão comum a tantos de nós (exceto, talvez, pelos cenários), mas que vc colocou de uma maneira muito contundente.
Ouso dizer que pode estar aí uma veia importante do seu talento, do seu estilo: atacar na jugular, mas com muita classe! Dar a porrada e deixar o leitor/assistente encantadamente atônito.
Parabéns! E que venha o curta! E outros contos...

Unknown disse...

O que vc escreveu é tão visível, quase palpável... Se sua intenção era não escrever ficção, te dou o consolo próximo da realidade. Show!

Anônimo disse...

Tive a mesma impressão de muitos, tb vi o filme passando na minha frente.

Como tudo tem 2 visãoes, vai ter gente achando o Lindauro um sacana por mexer com o morto.
Outros vão achar ridículo um defunto precisar se vestir com uma roupa boa.

Eu estou no 2o grupo, a "carne" dps de morta só serve pra adubo e alimento. O que eu achei intrigante foi a atitude do Lindauro de dar o paletó.
Será que o que os outros vão pensar é tão importante assim?!!

Alex disse...

Fácil de fazer, não sei, mas que vale a pena ser feito e participar de festivais, um curta desses valeria, muito.
Não só pela qualidade que já se vê, como pelo tema, necessário. Especialmente por ser "marciano". Em geral, as maiorias de vez em quando precisam ser lembradas do que realmente conta...

Richard Mathenhauer disse...

Aonde anda você, ainda que cambalenado? rs

Abraços,