Com alguns transtornos emocionais eclodindo, pensei até em dar férias ao Blog, mas, quando me dei conta, já estava rabiscando um novo texto. “Festa de S. João” é sobre a derrocada de uma família, numa modesta fazenda do interior de Alagoas, numa época de crescente êxodo rural no Brasil. Uma mulher presa a um casamento inútil, uma filha solteirona com problemas mentais, um filho idealista e covarde e um chefe de família extremamente abrutalhado, estes são os personagens. Ficam no ar as perguntas: Será que vale a pena manter um relacionamento de aparências? Por que tantas vezes sabotamos os nossos próprios sonhos? Vocês já tomaram alguma decisão importante, pressionados por uma situação-limite? Quem quiser contribuir com a sessão "análise" rs é só respondê-las. Espero que todos tenham tido uma linda Páscoa! Abração!
Festa de S. João
“E não havia mesmo motivo de lhe dar amor”.
Tudo era tão diferente além daquelas grossas toras de madeira que cercavam a fazenda S. Francisco, no interior de Alagoas. Em 1972, Ana Laura ainda tentou mudar-se de lá com a sua família, época em que saltavam aos olhos os benefícios da “modernidade”, mas esbarrou na teimosia incansável do marido, o severo Olinto Ferreira, que, por alguma razão, preferiu viver de forma primitiva a se render à facilidade da luz elétrica, à mercearia por perto, ao posto de saúde, etc. E foi sob tensão e medo que Ana Laura criou os seus dois filhos, a frágil Carolina e o inquieto João Pedro, este o único que conseguiu driblar as rabugices do pai, para estudar na Cidade.
Não se passava um só dia sem que houvesse um princípio de briga ou uma briga inteira, naquela casa. Tudo era motivo para Olinto revoltar-se contra Deus e contra todos. Se falassem no casamento de Carolina, que já estava passando da idade, a resposta era sempre a mesma: “Minha filha não é feijão bichado para se andar oferecendo por aí. E depois quem vai querer uma menina que vive amofinada no quarto, recebendo comida pela porta feito um animal?”. Quando João Pedro tentava seduzi-los com as grandezas da Cidade, ele logo o interrompia: “Cidade só serve pra divertir os olhos e esvaziar os bolsos. Mas quem quiser tomar seu rumo e sair cavando o mundo por aí, não precisa de minha benção”.
Havia entre Olinto e João Pedro uma convivência muda, uma intimidade ignota. Não é que se odiassem também. Não, não chegavam a tanto. Mas também não se podia dizer que um morria de amores pelo outro. Pai e filho, dois estrangeiros dentro da própria casa. Só restava mesmo a Ana Laura voltar-se para a sua tristeza e bordados, que afinal eram tudo a mesma coisa. Quem a via bordando nas horas vagas não imaginava que ali, naqueles simples pedaços de tecido, estavam em relevo todas as suas angústias e frustrações, por isso ela sempre manifestava a vontade de, a qualquer momento, encontrar o ponto inicial do artesanato para poder desfazer tudo.
A novidade da festa de S. João, no entanto, chegou trazendo uma pequena esperança, na casa dos Ferreira. Era tradição, naquela época do ano, na Cidade, as ruas serem enfeitadas com bandeirolas e na frente de cada casa serem montadas grandes fogueiras. Havia também, na praça, quadrilhas e barraquinhas com música e comidas típicas. As crianças estouravam bombinhas e os adultos foguetes. O céu se enchia de luz. João Pedro chegou eufórico portando a boa nova: “Minha mãe, não se fala em outra coisa na Cidade. O São João deste ano vai ser o melhor. Vai ter até músicos da capital!”. Carolina, que quase não esboçava reações de contentamento, dessa vez não parava de sorrir. “Sim, minha irmã, música e dança. Vai ser bem divertido. Nós vamos!” – continuou animado. Ana Laura lamentava ter que “colocar água na fervura”, mas tinha lá os seus motivos para ser cautelosa: “Tudo vai depender do pai de vocês. Vocês sabem que ele detesta a Cidade. Festa então...”. João Pedro não se conteve: “O papai deve ter o umbigo enterrado aqui, não é possível! Todo mundo está se mudando pra lá, só a gente que ainda mora neste fim de mundo”.
O leitor já deve imaginar que, ao saber dos planos para a festa de S. João, Olinto, que tinha um gênio irascível, não aprovou a ideia. João Pedro até se atreveu a defender a mãe, mas foi empurrado fortemente contra a parede. A débil Carolina, ao ouvir todo aquele barulho, se assustou e fugiu desesperada pela janela. Era uma noite densa e por isso, lá fora, ficou ainda mais exposta aos perigos. Foi encontrada, na manhã do dia seguinte, na mata fechada, com o corpo todo crivado de picadas de abelhas. Ao vê-la ali, imóvel, transfigurada, Ana Laura entrou em estado de choque. Só havia um responsável por aquela tragédia: o cruel Olinto. Cheia de coragem, ela o enfrentou: “Você matou a nossa filha, seu miserável!” – desabafou exasperada. Pensou em esbofeteá-lo. É sempre humilhante para um homem receber uma bofetada, mas preferiu apenas concluir que estava indo embora. Olinto não disse uma única palavra, mas possuído por uma força impura, começou a destruir tudo que encontrava pela frente.
É bem verdade que a amarga perda de Carolina impulsionou a tão sonhada partida de Ana Laura e João Pedro, para a Cidade ou qualquer outro lugar, mas também deixou marcas definitivas em Olinto. Comentava-se que a menina teria transferido a ele a sua loucura, o infeliz passou a delirar constantemente e a se comportar como um “bicho”, mas permaneceria na fazenda “até a destruição do mundo”. Já Ana Laura experimentaria, pela primeira vez, o desejo de libertar-se daquelas fundas raízes, na terra árida: “Nunca mais piso os meus pés aqui”. E, ao longe, o barulho dos foguetes já anunciava as comemorações da festa de S. João.
Festa de S. João
“E não havia mesmo motivo de lhe dar amor”.
Tudo era tão diferente além daquelas grossas toras de madeira que cercavam a fazenda S. Francisco, no interior de Alagoas. Em 1972, Ana Laura ainda tentou mudar-se de lá com a sua família, época em que saltavam aos olhos os benefícios da “modernidade”, mas esbarrou na teimosia incansável do marido, o severo Olinto Ferreira, que, por alguma razão, preferiu viver de forma primitiva a se render à facilidade da luz elétrica, à mercearia por perto, ao posto de saúde, etc. E foi sob tensão e medo que Ana Laura criou os seus dois filhos, a frágil Carolina e o inquieto João Pedro, este o único que conseguiu driblar as rabugices do pai, para estudar na Cidade.
Não se passava um só dia sem que houvesse um princípio de briga ou uma briga inteira, naquela casa. Tudo era motivo para Olinto revoltar-se contra Deus e contra todos. Se falassem no casamento de Carolina, que já estava passando da idade, a resposta era sempre a mesma: “Minha filha não é feijão bichado para se andar oferecendo por aí. E depois quem vai querer uma menina que vive amofinada no quarto, recebendo comida pela porta feito um animal?”. Quando João Pedro tentava seduzi-los com as grandezas da Cidade, ele logo o interrompia: “Cidade só serve pra divertir os olhos e esvaziar os bolsos. Mas quem quiser tomar seu rumo e sair cavando o mundo por aí, não precisa de minha benção”.
Havia entre Olinto e João Pedro uma convivência muda, uma intimidade ignota. Não é que se odiassem também. Não, não chegavam a tanto. Mas também não se podia dizer que um morria de amores pelo outro. Pai e filho, dois estrangeiros dentro da própria casa. Só restava mesmo a Ana Laura voltar-se para a sua tristeza e bordados, que afinal eram tudo a mesma coisa. Quem a via bordando nas horas vagas não imaginava que ali, naqueles simples pedaços de tecido, estavam em relevo todas as suas angústias e frustrações, por isso ela sempre manifestava a vontade de, a qualquer momento, encontrar o ponto inicial do artesanato para poder desfazer tudo.
A novidade da festa de S. João, no entanto, chegou trazendo uma pequena esperança, na casa dos Ferreira. Era tradição, naquela época do ano, na Cidade, as ruas serem enfeitadas com bandeirolas e na frente de cada casa serem montadas grandes fogueiras. Havia também, na praça, quadrilhas e barraquinhas com música e comidas típicas. As crianças estouravam bombinhas e os adultos foguetes. O céu se enchia de luz. João Pedro chegou eufórico portando a boa nova: “Minha mãe, não se fala em outra coisa na Cidade. O São João deste ano vai ser o melhor. Vai ter até músicos da capital!”. Carolina, que quase não esboçava reações de contentamento, dessa vez não parava de sorrir. “Sim, minha irmã, música e dança. Vai ser bem divertido. Nós vamos!” – continuou animado. Ana Laura lamentava ter que “colocar água na fervura”, mas tinha lá os seus motivos para ser cautelosa: “Tudo vai depender do pai de vocês. Vocês sabem que ele detesta a Cidade. Festa então...”. João Pedro não se conteve: “O papai deve ter o umbigo enterrado aqui, não é possível! Todo mundo está se mudando pra lá, só a gente que ainda mora neste fim de mundo”.
O leitor já deve imaginar que, ao saber dos planos para a festa de S. João, Olinto, que tinha um gênio irascível, não aprovou a ideia. João Pedro até se atreveu a defender a mãe, mas foi empurrado fortemente contra a parede. A débil Carolina, ao ouvir todo aquele barulho, se assustou e fugiu desesperada pela janela. Era uma noite densa e por isso, lá fora, ficou ainda mais exposta aos perigos. Foi encontrada, na manhã do dia seguinte, na mata fechada, com o corpo todo crivado de picadas de abelhas. Ao vê-la ali, imóvel, transfigurada, Ana Laura entrou em estado de choque. Só havia um responsável por aquela tragédia: o cruel Olinto. Cheia de coragem, ela o enfrentou: “Você matou a nossa filha, seu miserável!” – desabafou exasperada. Pensou em esbofeteá-lo. É sempre humilhante para um homem receber uma bofetada, mas preferiu apenas concluir que estava indo embora. Olinto não disse uma única palavra, mas possuído por uma força impura, começou a destruir tudo que encontrava pela frente.
É bem verdade que a amarga perda de Carolina impulsionou a tão sonhada partida de Ana Laura e João Pedro, para a Cidade ou qualquer outro lugar, mas também deixou marcas definitivas em Olinto. Comentava-se que a menina teria transferido a ele a sua loucura, o infeliz passou a delirar constantemente e a se comportar como um “bicho”, mas permaneceria na fazenda “até a destruição do mundo”. Já Ana Laura experimentaria, pela primeira vez, o desejo de libertar-se daquelas fundas raízes, na terra árida: “Nunca mais piso os meus pés aqui”. E, ao longe, o barulho dos foguetes já anunciava as comemorações da festa de S. João.
9 comentários:
Viver a VERDADE ... Viver a TRANSPARÊNCIA ... Viver no LIMITE ... e quando se fizer necessário transpor e romper o LIMITE faça-o sem pensar duas vezes ...
Aquiete-se amigo ... tudo na vida tem a sua solução ... na grande maioria das vezes ela só espera uma atitude nossa para aparecer ...
bjux
te cuida ...
;-)
Muito boa e bem escrita a sua história!
Olinto já tinha uma característica confusa e obscura mesmo antes do possível assassinato de sua filha. A festa de S. João talvez venha a calhar sua mente "antisocial" a fazer atrocidades.
Impor rédeas é muito comum em cidades pequenas, por isso mesmo eu não moro mais em locais assim (kkk)
Abraços!
Olá Luis... sabe, as vezes tomamos algumas decisões que no turbilhão dos acontecimentos parece a mais correta... mas na verdade decisões só são tomadas quando estamos em paz... costumo falar... se não sabe o que fazer, senta e espera!!! Não precisamos saber de tudo, não precisamos fazer nada agora, a vida sempre continua...então, espere até estar em paz...que com certeza quando vc ver a sua decisão estará tomada na maior tranquilidade... Beijos e não suma não que te ler é um prazer!!! Roberta.
Grande Luis
Ainda bem que você não tomou uma decisão no momento de agitação, seria uma grande tristeza não tê-lo por perto.
Já passei por isso e sei que as vezes temos vontade de abndonar tudo, mas depois refletindo com calma veremos que nossas decisões foram impulsivas demais no calor das tormentas.
Que bom que você continua aqui. Me perdoa que acabei de não finalizar a leitura do post quando li dessa sua vontade de nos abndonar.
Voltarei com calma para comentar.
Abração
Eu voltei aqui. =D
Olinto não é o assassino. Ana Laura matou a filha, simbolicamente é claro. Era a tragédia que estava esperando para tomar seu rumo. A maior punição que uma mulher fraca pode dar a seu marido algoz é a morte de suas sementes.
Luis,
Muito legal a estória dessa família, mas agora deu vontade de saber mais sobre ela! Mais sobre o antes desse momento .... e sobre o depois. Acho que essa é a primeira vez que leio uma ficção genuína sua e deu gostinho de quero mais .... :))
Qtos as perguntas:
1) vale a pena o relacionamento de aparências? Pela minha observação do mundo, creio que o casamento de "aparências" somente para prestar contas à sociedade é meio raro. Contudo, os casamentos mantidos quando o amor morreu já são bem mais comuns. Mas esses acabam quase sempre tendo inúmeras razões que, talvez, o justifiquem ou expliquem: a dependência econômica entre o casal, a educação dos filhos, etc, etc. Particularmente, creio que a mais comum seja a patologia psicológica de um que "casa" com a patologia do outro, a doença de um se sustenta na doença do outro. Esses não se separam jamais e passam a vida distribuindo infelicidades.
Claro que sem amor não vale a pena, mas as vezes me ocorre que desistimos dos relacionamentos rápido demais. Queremos a felicidade prêt-a-porter. E assim, deixamos de trabalhar a relação, de construir elos de tolerância que vão criar o alicerce da relação entre duas pessoas: a cumplicidade.
2) Sabotar os sonhos é típico da pouca auto-estima que o mundo vai impondo a gente. Parece que não nos sentimos merecedores deles. Já aconteceu tanto comigo ....
3) Decisões em situações-limite? Bem, um ambiente de reflexão e calma a primeira vista levaria a decisões melhores. Contudo, será que também não acabam sendo meio de cultura pra insegurança, pro tal "boicote" ali de cima e pra postergação sem-fim? Muitas vezes as situações-limite fazem aflorar na gente a coragem e a ação. Já tomei inúmeras decisões acertadas quando "a vaca tava no brejo". Aliás, em muitos casos, tinha ido pro brejo pq fiquei na inação .... só refletindo .....
:))
Abs de sempre,
GB
Gostei do cenário mondrianesco..
Boa narrativa...vou dar mais uma fuçada...e volto com mais comentários...rs
abração
Passei por aqui!
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