sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

PRESENTE DE NATAL



Na classe, falavam sobre presentes. Enquanto a maioria dos meninos sonhava com um videogame, um tênis Nike, uma bola de futebol, a camisa 10 do Corinthians, Genésio não queria nada disso: “Meu sonho, professora, era morar numa rua de asfalto pra mim brincar”. E à medida que ele foi descrevendo a favela, a lama, o esgoto a céu aberto, os tiroteios, a professora encolheu-se toda, constrangida, como se tivesse cometido o mais vil dos pecados.

Pessoal, é Natal! Estou cheio de amor. Vem, cá. Dá um abraço! rs. A mensagem é bem curtinha, mas sincera. Desejo a todos um feliz Natal e que 2011 seja maravilhoso, para todos nós. Vem coisa boa por aí, acreditem. Bem, estou cozinhando, não posso demorar. Abração!!!

sábado, 18 de dezembro de 2010

O CORAÇÃO NO ASFALTO


“Olhar é um ato criador”.

Toda semana, Divina fazia aquele mesmo trajeto até em casa. Depois do expediente na fábrica, voltava sempre em linha reta. Nunca ousara experimentar outros caminhos, a esperança estava em algum dia ser recompensada pela sua retidão. Evitava até olhar para os lados. Pra quê?, sempre as mesmas paisagens. Não havia o menor interesse nas pessoas. Também, não lhe davam um único sorriso. Melhor então que fossem para sempre anônimas. Com alguma sorte, numa fila de banco, palavras vagas: “Que calor, não acha?”, no que ela concordava irrefletidamente. Nunca alguém a lhe pedir ajuda ou uma informação. Qualquer coisa para que se sentisse útil. A cabeça sempre pendida puxava o seu olhar para baixo, “Levanta essa cara, menina”, palavras da mãe nervosa que deixou em Mato Grosso. O vestido ultrapassando os joelhos lhe dava um ar infantil. Falso, mas infantil. Os cabelos sempre presos atrás daquelas orelhas pequeninas e mortas. O rosto trágico. O único sinal de vaidade era a correntinha de ouro com o pingente de cristal. Presente do pai. Confundia quase sempre humildade com pobreza. Divina caminhava um dia pela Guarani, quando encontrou uma carteira no chão. “De quem será?” – disse a si mesma numa expressão meio apagada. Olhou em torno e não viu ninguém que demonstrasse estar à procura do objeto. Uma carteira de couro vagabundo. Teve medo de entrar num daqueles bares e procurar pelo dono: “Podem mexer comigo. Deus me livre!”. Num ato de desespero, colocou a carteira dentro da sua bolsa e seguiu para casa. “Sou uma ladra. Acabo de roubar uma carteira. Sou uma ladra” – e repetia “ladra” acreditando ser mesmo uma. No vagão do metrô, sentou-se lentamente, o tempo todo lhe pesando a consciência. Tinha a impressão de que os passageiros sabiam do seu crime. Não só sabiam como se recusavam a puni-la. Por pena, o que era pior. Nunca ninguém lhe devotava respingos de amor ou ternura, apenas a compaixão crua, a obrigação escondida no “amai-vos uns aos outros”.
Divina morava num apartamento pequeno e modesto, no centro de São Paulo. Primeiro andar. Tinha pavor de altura. De elevador. De assalto. De tudo. Logo que chegou em casa, procurou descansar. Estava exausta. As pernas moles e muito finas se gastavam à toa. Quis logo abrir a bolsa, mas Carlos Magno estava faminto. Carlos Magno era o gato de rua que a aceitou indulgente como a sua dona e só por isso morava com ela. Entrava e saía pela sacada sem a menor cerimônia. Agora estava com fome e Divina tinha que ir se arrastando até a cozinha para pegar o seu leite. Ao colocar o leite do bicho na sacada, percebeu que já era noite. Carlos Magno não cabia em si de tanta felicidade. Ela, por sua vez, não conhecia nem a felicidade de si mesma. Evitava-se ao máximo. Tinha vergonha de se ver e não se gostar. Não usava batom e nem pó compacto (era do tempo do pó compacto). Mas tinha a pele morena, o que já lhe era algum luxo. Naquele dia, concentrou-se apenas no que chamou de “meu roubo”. Porque precisava de perdão, acreditou mais uma vez que era realmente uma ladra. Se não fosse o barulho da língua de Carlos Magno tocando o pires, perceberia o dilacerante silêncio que fazia ali dentro. “Tá pensando na morte da bezerra?” – interromperia mais uma vez a voz metálica da mãe. Quando deu por si, já estava abrindo a bolsa. Primeiro tocou vacilante a carteira achada e só depois vasculhou tudo que havia lá dentro. Algumas notas de dinheiro. Os documentos. Canhotos de compras. Cartões de lojas da Florêncio de Abreu. Um bloquinho de telefones... Chamava-se Floresberto. E guardou tudo novamente num impulso de ladrão pego em flagrante. “Além de roubar, também vasculho a vida alheia. Sou mesmo uma bela bisca”. E continuou se culpando. Talvez fosse melhor dormir, mas o sono nunca vinha quando queria. Não tinha fome também. Só conseguia pensar na foto de Floresberto. Moreno. Olhar debochado. Cabelos de recruta. “Dizem que o couro cabeludo do homem é muito mais oleoso que o da mulher” – e achou graça daquela informação inútil vir, assim, tão sem-hora. Talvez andando de um lado a outro do apartamento o sono viesse. “As noites me parecem perigosas, apenas com a vantagem de serem mais tolerantes” – era um bonito pensamento, até quis tomar nota, mas desistiu logo em seguida. Começou então a andar desesperada pela sala, como uma peregrina ao encontro de Deus. Onde estava mesmo Deus? As pernas quase se partindo. Tropeçou no tapete e machucou a testa. Nada grave. Era o seu próprio corpo oferecido a Ele em holocausto. O sono, enfim, chegara. Sono leve, nada de Floresberto: “Já sonhei tanto com quem não presta. Quando a gente quer um sonho bom...” – já despertou resmungando. E levantou da cama com aquela sensação de mal-estar, de ter deixado o dia anterior inacabado. Perturbava-lhe, desde ontem, a imagem de Floresberto. O ontem a esmagava. Os seus pensamentos iam e vinham, mas sempre paravam nele: “O nome seria a mistura de Flores e Alberto ou Flores e Adalberto?” – questionava-se. A vantagem de ser, assim, tão inútil era poder reconhecer a sua pobreza de espírito, mas isso ela já fazia muito bem, obrigado. Tomando para si a carteira de identidade do rapaz, ficou um bom tempo olhando a foto dele. Depois voltava a escondê-la porque temia os seus próprios pensamentos “pecaminosos”. Mas logo a resgatava da gaveta e tudo recomeçava outra vez. Queria amar Floresberto. Estava decidida. Amar com a intensidade de quem ama pela primeira vez. Ele a inaugurara para o amor. Tinha que ser ele. Seria ele. A faxina do sábado foi feita na presença dele. O pequeno pão com sardinha e o copo de Fanta foram degustados sob o olhar intacto dele. Se não percebia as moscas sobre os restos do pão era tão-somente por distrair-se pensando nele. Já o faminto Carlos Magno conheceria pela primeira vez a indiferença. O seu reinado chegara ao fim. Divina agora apenas o suportava. Nada mais.

E as horas passaram depressa. No domingo pela manhã, ela decidiu ligar para ele. Havia um telefone no bloquinho de endereços e também o nome da rua, o número da casa, o bairro, etc. “É mesmo o Destino ou prevenção?” – indagou-se, antes de descer as escadas. Ainda vacilou diante do orelhão, na esquina, mas sobressaiu o seu desejo incontido de ouvir a voz do “seu homem”. Pouca coisa, mas tudo em sua vida não era sempre assim, tão pouco?. “Alô? Alô?? Alô???” – Floresberto, impaciente diante da mudez de Divina, desligou o telefone e voltou a dormir. Ela, ao contrário, chegou em casa com a sua recente felicidade desesperada. A voz dele era bonita. Grave. De homem. Ligou o pequeno rádio e procurou uma música qualquer. Não sabia dançar, mas se imaginou dançando com ele. Uma valsa. E saiu à procura de algum espelho. Pela primeira vez gostou de se ver. Não era de fato feia. Também não era bonita. Passou a mão no cabelo como quem faz um carinho. Imitou algumas poses de revistas. Imaginou a sua boca com um vermelho intenso, sedutor. Os olhos muito pretos, sombreados. Voltou a pensar numa presilha para o cabelo. Não os queria tão presos quanto antes. Procurou no guarda-roupa um vestido estampado. Tinha apenas um. Flores bem miudinhas. A sandália rosa estava de bom tamanho. Pronto. Esticou cuidadosamente a roupa no sofá. Escolheu até uma “combinação” nova. Não que Floresberto fosse vê-la despida já no primeiro encontro, mas Divina queria se saber usando uma calcinha e sutiã novos.

Na segunda-feira, no primeiro horário, ela seguiu para o Jabaquara. No metrô, abriu com cuidado a carteira e olhou de relance para a foto de Floresberto. “Ah, meu Floresberto!” – suspirou. Estava se sentindo uma mulher de verdade, sobrando em predicados. Atravessou a estação e foi até um taxista parado ali perto. Disse onde queria ir e entrou no táxi: “Não posso desistir agora”. As mãos suando. Tantos planos para os dois. O primeiro final de semana seria na praia. Sempre quis ver o mar, mas ninguém nunca a convidara para um passeio em Santos. Os verões se repetiam e ela sempre trancada naquele seu velho aquário. “Foi assim, como ver o mar / A primeira vez que meus olhos / Se viram no seu olhar” – cantarolou bem baixinho. Imaginava cada detalhe do corpo dele. Sentia calafrios. “Passando mal, moça?” – interrompeu o taxista. “Não, senhor. Uma indisposição passageira” – disfarçou, se recostando no banco. Minutos depois, ela já estava em frente à casa de Floresberto. Aproximou-se do portão. Recuou. Foi parar no outro lado da rua, a pretexto de observar melhor o imóvel. No fundo sabia que era o medo do desconhecido. A casa era simples, mas bem cuidada. Tinha um pequeno jardim com roseiras. Um painel de azulejos com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. “E ainda é religioso!” – estava com sorte. “O nosso primeiro beijo vai ser exatamente como o daquelas duas estátuas que vi no Centro. Longo” – não parava de imaginar. A rua estava praticamente deserta àquela hora da manhã. De vez em quando, o barulho de algum avião cruzando o céu, momento em que Divina levava a mão ao peito: “Valha-me Deus!”. Com aquela sua mania de andar sempre com os olhos fixos no chão, descobriu no asfalto o que considerou ser um sinal “divino”, um coração. “Sim, é um sinal! E dá pra ver que tem uma flecha transpassada. A flecha de Cupido! Como é mesmo a lenda?...”. Não se lembrava, mas os versos de Fernando Pessoa ainda estavam escritos em sua memória. Tinha-os na contracapa de um caderno, nos tempos do colegial, e decorava-os nas aulas de química: “‘Uma Princesa encantada / A quem só despertaria / Um Infante, que viria / De além do muro da estrada’... Eu sou a Princesa. Eu!” – e concluiu num meio sorriso, para que não a achassem tão louca. O tempo passava depressa e Divina não queria mais esperar. “Amar exige coragem” – sentia-se inspirada. Ainda do outro lado da rua, viu sair de dentro de casa um homem sem camisa. Calção de esportista. Divina não teve dúvidas, era ele. O mesmo cabelo de recruta. O olhar menos debochado, talvez com sono. O seu Floresberto. O coração dela disparou e, imediatamente, um sorriso franco lhe brotou dos lábios. “Que pensem que sou louca! Louca! Eu amo!” – vibrava. Aquilo é que era ser feliz? Divina então queria ser feliz para sempre. Floresberto pegou o jornal do chão e fez um movimento de retorno ao interior da casa. Divina tirou logo a carteira dele da sua bolsa e ensaiou a partida. Não houve tempo. Saiu de dentro de casa uma loira muito fresca, alva, bem feita de corpo. Beijaram-se ali mesmo. Pareciam apaixonados. Divina recuou confusa. Quando deu por si, a mulher já havia atravessado o portão e dobrado a esquina. Floresberto desaparecera também. Como num sonho. Ela ficara agora ali, parada, impassível, digerindo a sua tristeza. Conheceu o amor e a traição a um só tempo. Restava-lhe apenas a dignidade de avançar ultrajada em direção ao portão. Foi o que fez, depois de retirar todo o dinheiro que havia na carteira do infeliz e devolvê-la à sua porta. Em seguida, entrou num táxi. E aquele coração continuou lá, desbotado. No asfalto.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O ESTILO CLARICE




Se estivesse viva, a escritora Clarice Lispector completaria hoje 90 anos! Ontem, fez 33 que ela morreu. 2010 foi um ano praticamente todo dedicado a ela, com muitas homenagens, discussões em torno da sua obra (que são inesgotáveis!), os lançamentos de uma ótima biografia e fotobiografia, peça de teatro, a notícia de um filme que deve ser lançado no ano que vem, um certo oportunismo aqui e ali também, claro, mas o mais importante é que ela foi bastante reverenciada e tenho certeza de que conseguiu arrebatar muitos novos leitores. Pra mim, o resultado foi bastante positivo. Clarice é a minha escritora brasileira favorita (“Eu, enfim, sou brasileira, pronto e ponto”), o que não é nenhuma novidade para quem me conhece ou me lê, mas o que me motivou a escrever o post de hoje foi menos a data em si do que uma informação até banal: a importância da moda na sua vida. A motivação veio de uma entrevista do seu mais novo biógrafo, o norte-americano Benjamin Moser: “A coisa mais engraçada foi que uma loja de moda, J. Crew, batizou um sapato desta estação com o nome de Clarice!”.

Um sapato com o nome de Clarice? Convenhamos, é bastante curioso, não? Já li várias reportagens que dão conta do poder da imagem dela sobre as pessoas. Não raro, esses privilegiados se referem a esse momento como uma espécie de “acontecimento”. A artista plástica Maria Bonomi, por exemplo, que em 1971 Clarice a definiu numa crônica como sua “gêmea de vida” e que tive a oportunidade de conhecer, no ano passado, justifica essa impressão: “Clarice era uma mulher linda. A gente entrava no restaurante e não havia quem não quisesse pagar o almoço”. O editor Pedro Paulo de Sena Madureira concorda: “Quando ela entrava num ambiente, mudava a direção do ar”. E não eram apenas os seus traços exóticos que provocavam esse “reboliço”, mas também a sua permanente elegância. Vaidosa, Clarice provocou ao dizer que preferia que saísse um bom retrato seu no jornal do que os elogios. Quanto a isso, ela não poderia se queixar, afinal sempre se apresentava de forma impecável e as suas imagens nunca deixaram de reforçar o mito. No entanto, a ausência do sorriso em praticamente todas elas tinha uma razão especial. Quem me contou essa história foi a própria escritora Lygia Fagundes Telles, amiga de Clarice. Ambas conversavam também sobre cosméticos e moda: “Clarice uma vez me disse (imitando a língua presa da amiga): Lygia, não sorria nas fotos!, as escritoras precisam ser levadas a sério”.

Investigando essas fotografias, percebemos um gosto especial pela maquiagem pesada (cílios postiços, delineador, batom vermelho), o que seria a maior marca do seu estilo. Destacam-se também os vestidos estampados e as camisas listradas (como a da famosa entrevista à TV Cultura em 1977) ou de poá ou gola rulê. A foto mais dissonante é talvez uma em que ela aparece com um casaco de pele, na capa de um livro de textos seus selecionados e que, ao invés de se parecer com uma diva, ficou com cara de vamp. Não podemos esquecer também os acessórios: pérolas, bijuterias e óculos escuros. Os cabelos estâo sempre bem penteados. Enfim, uma referência de moda e bom gosto. Em muitas dessas imagens, Clarice está com um inseparável cigarro (da marca Hollywood). Aliás, foi um cigarro que, de certa forma, provocou também uma ruptura no seu visual. Na década de 60, depois de dormir com um deles aceso e ter o quarto incendiado e o próprio corpo gravemente ferido, Clarice passou maus momentos num hospital, onde fez cirurgias plásticas numa das mãos, mas, a partir daí, nunca mais foi a mesma. Desde então, ficou mais recolhida e adotaria também uma forma de se vestir mais “sombria”.

É inegável que tamanha vaidade vinha de sua própria natureza. No conto “Restos de Carnaval”, por exemplo, é emblemático o motivo que leva a menina (Clarice?) a querer se fantasiar de rosa: “ser outra que não eu mesma”. Não posso afirmar, mas suponho que o modo como ela se vestiu, ao longo da vida, talvez tivesse a mesma intensão. Considero oportuna também uma de suas frases, extraída de algum suplemento feminino, onde ela ataca a vulgaridade com sofisticação: “A mulher elegante não salta aos olhos de quem passa. Elegância não é acompanhar a última moda, mas estar sempre usando aquilo que lhe cai bem”. Muito moderno para um tempo em que a moda brasileira estava apenas engatinhando. Sugiro também a um de nossos estilistas que traduza o estilo da escritora em alguma coleção e não tenho a menor dúvida de que não há ninguém melhor para fazê-lo do que Ronaldo Fraga. O sucesso será garantido. Parabéns, pelo seu dia, exuberante Clarice!

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

ABRINDO O ZÍPER DA MPB


Rodrigo Faour é jornalista, pesquisador, crítico, produtor musical e autor dos livros: “Bastidores – Cauby Peixoto: 50 anos da voz e do mito” (2001), “Revista do Rádio – Cultura, fuxicos e moral nos anos dourados” (2002) e do pioneiro “História Sexual da MPB – A evolução do amor e do sexo na canção brasileira” (2006), livro que deu origem ao programa homônimo no Canal Brasil, na sua segunda temporada, e outro na rádio MPB FM (carioca),“Sexo MPB”. É também responsável pelo processo de revitalização do acervo das principais gravadoras brasileiras, organizando coletâneas de cantores pra lá de consagrados como Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Caetano Veloso e Dolores Duran (só para ficarmos nesses quatro). Rodrigo acabou de lançar a sua segunda biografia, “A bossa sexy e romântica de Claudette Soares”, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. E foi depois do lançamento do livro, em São Paulo, que nos encontramos para um bate-papo rápido e descontraído sobre um assunto que ele domina como poucos: música popular brasileira.

“De la musique avant toute chose”, mesmo?

Sim. A música é minha água, meu sangue mesmo. Vida. Por isso adoro unir tesão e MPB, no mesmo balaio. Pra mim, são sinônimos. Mas não qualquer MPB, mas, sim, “a” MPB que me interessa.

Como surgiu a ideia do delicioso “A bossa sexy e romântica de Claudette Soares”?

O livro nasceu por causa do CD duplo A bossa sexy de Claudette Soares, que produzi em 2006, resgatando as gravações super modernas e pop que ela fez, no final dos anos 60, na Philips, com arranjos de Antonio Adolfo, César Camargo Mariano e Rogério Duprat. No encarte, eu escrevi um texto a seu respeito e ela ficou encantada. Daí, me convidou para escrever este livro e eu aceitei e batizei de A bossa sexy e romântica de Claudette Soares porque ela também desenvolveu um lado romântico mais sério em sua obra, que eu gosto menos, mas que também marcou muito para o público dela, tanto que seu maior sucesso foi a balada (tristíssima) De tanto amor, de Roberto & Erasmo, em 1971.

Você não me parece ter sido aquela criança retraída, “na janela”, como o poeta Mario Quintana. O que você fazia nessa época, espiava pelo buraco da fechadura?

Fui uma criança agitada e alegre. Depois passei uma pré-adolescência e adolescência difíceis, com muitos conflitos por ser um pouco diferente dos outros garotos, com gostos, educação, atitudes e responsabilidades.

O seu livro mais popular, o “História Sexual da MPB”, pode ser chamado carinhosa ou maliciosamente de “Kama Sutra da MPB”?

Obrigado pela parte que me toca (risos). Acho que ambos. Na parte comportamental, há questões mais sérias que levanto, ao mesmo tempo em que tem pitadas maliciosas, tesudas e também um convite à reflexão do que buscamos no amor e no sexo em nossa vida.

Há alguma música de duplo sentido que você considere a mais ousada ou um daqueles funks beeem pesadões?

Cito logo a pioneira “Boceta de Rapé”, da primeira década do século passado. Aliás, ela está no meu CD duplo, Sexo MPB com Rodrigo Faour, recém lançado pela EMI. Esta não deixa a desejar a nenhum funk.

Se você fosse a Leila Diniz que palavrão você diria agora?

Caralho!!!

E essa alegria interminável? Você nunca parou e disse “meu mundo caiu”? Nunca fez análise, nunca ficou carente, triste, tomou remédios para dormir...?

Sou mais alegre, mas também sou melancólico e reflexivo, sofro a mesma solidão dos artistas que, num dia, cantam ou se apresentam para milhares de pessoas e, no outro, se vê sozinho num quarto de hotel ou na sua própria casa, num sábado à noite. A gente nasce e morre todo dia. A Angela Maria me disse isso uma vez e concordo com ela.

Por você saber tanto sobre MPB, as pessoas normalmente não o abordam ao estilo “Essa Noite se Improvisa”? Eu mesmo já fiz isso (risos).

Sim. Faz parte. Eu gosto. Me divirto muito com música.

E nunca pensou em cantar profissionalmente?

Comecei cantando. Meu sonho era ser cantor, mas sou muito autocrítico, por isso acho que sou mais útil ao país sendo produtor, escritor e pesquisador musical.

Você prefere como os paulistanos se vestem ou como os cariocas se despem?

Adoro pouca roupa. No Rio, vivo seminu o dia todo. O máximo de luxo em ser carioca da zona sul é ir ao banco sacar dinheiro de sunga. É o máximo!

Quem você acha que é o cantor “Divino Maravilhoso” da MPB?

Cauby.

Por quê?

Porque ele soube se renovar e conservar a voz bonita por 60 anos. Tenho muito orgulho de ter escrito a sua biografia.

E pra quem você cantaria “Carcará”?

Pra você. De preferência imitando Maria Bethânia, intérprete definitiva da canção.

Por falar em Bethânia, porque os gays gostam tanto dela, hein?

Não só dela, mas de todas as grandes cantoras. São mulheres fortes, exuberantes e, não raro, teatrais. Faz parte da cultura gay.

E o que você tem cantado no chuveiro?

Matriz ou Filial, Na Baixa do Sapateiro, O Primeiro Clarim...

E pra terminar... “Quando o sexo acaba, tudo desaba”?

Depende da expectativa. “Amor é bossa nova, sexo é carnaval”.

Não dava e também não era a minha intenção fazer uma investigação profunda sobre o trabalho do Rodrigo, o importante mesmo é ler os seus livros, cuja narrativa é sempre muito leve, divertida, com muita informação (“História Sexual da MPB” é um primor do gênero, não é à toa que tem o aval do escritor Ruy Castro), assistir ao programa dele no Canal Brasil (tem vídeos no site do canal), ouvir o da rádio, seu CD duplo (que é ótimo, sobretudo o primeiro), mas, claro, quem quiser saber mais novidades sobre o trabalho dele basta acessar o seu site oficial (está entre os meus favoritos). O que não posso deixar de ressaltar mesmo é que o Rodrigo é totalmente apaixonado pelo que faz e não mede esforços para realizar os seus inúmeros projetos. Claro, que suas palavras podem ser também manejadas como machado, “comigo é 8 ou 80, não tem meio termo”, ele costuma dizer, mas, quando elas entram em cena, é tão-somente para protestar contra falsos talentos, protegidos da mídia, pela falta de letras transgressoras na atual MPB, etc. Mas nada que o faça perder o humor. Comecei o nosso papo com aquele célebre verso do poeta Paul Verlaine, “Antes de tudo, a música”, e recorro agora a outros dele também: “Lembro-me / Dos velhos tempos / E choro”, porque esses livros do Rodrigo só vieram confirmar o que eu já sabia: o melhor da nossa música continua ainda, no passado.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

DIA DE COMBATE À AIDS


Lady Gaga, Alicia Keys e Elijah Wood morreram de mentirinha esta semana numa campanha bem bolada de combate à AIDS. Eles só devem retornar à vida digital, depois de arrecadarem US$ 1 milhão, para ajudar os infectados pelo HIV da África e da Índia. Não deu para fazer o mesmo, claro, e também não tive tempo de produzir nada muito especial, mas, por outro lado, gosto também de fazer coisas de improviso, por isso quando vi a imagem da camisinha gigante não tive dúvidas, recortei a danada e sapequei sobre um quadro meu. O slogan veio, assim, num jorro (com o perdão do trocadilho rs): #Não importa o tamanho, tem que usar. Mais direto e sugestivo impossível. Volto em breve. Devendo várias visitas, enfim,... Abração!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

ÓDIO E PRECONCEITO

Foto: A.E.

Estive ontem na Balada Literária, um evento maravilhoso organizado pelo escritor Marcelino Freire, em São Paulo, voltei pra casa cheio de novidades, feliz por ter me encontrado e conversado com a escritora Lygia Fagundes Telles e com o meu querido amigo Alcides Nogueira, louco para dividir esse momento de alegria com vocês, mas sou obrigado a deixar esses assuntos mais leves para um próximo post. Depois de assistir àquele vídeo da agressão a um jovem na Av. Paulista, no último domingo, não pude e não quero me calar. É revoltante, para dizer o mínimo! “Batemos porque ele é veado” – teria dito um dos agressores, que alegou ainda que o jovem de 23 anos o teria “paquerado”. Ainda que isso fosse verdade, não lhe dava o direito de fazer o que fez. Quem assistiu àquelas terríveis imagens viu que a agressão foi totalmente gratuita, o ódio pelo ódio. Em dezembro do ano passado, um outro débil mental, Alessandre Fernando Aleixo, de 38 anos, atacou com um taco de baseball o designer Henrique de Carvalho Pereira, de apenas 22 anos, na Livraria Cultura, do Conjunto Nacional, na mesma Av. Paulista. Depois de quase um ano, em estado vegetativo, o jovem morreu no Hospital das Clínicas. O agressor teria confessado em depoimento que queria atingir o dono da livraria que é judeu. Mais uma vez, o ódio pelo ódio.

Mas, voltando a esse caso mais recente... As investigações apontam que os mesmos agressores, entre eles quatro menores, são responsáveis por mais dois ataques. A justificativa da mãe de um deles foi patética, não sei se vocês leram no jornal: “Foi uma atitude infantil. Ele sai sempre com os amigos e nunca aconteceu absolutamente nada. É um garoto que tem boas notas. Estou constrangida pela situação”. Será que ela queria que o filho chegasse em casa e ainda lhe relatasse, com requintes de crueldade, os ataques aos gays dos quais costumava participar? Tenha, sim, VERGONHA!, minha senhora. Vergonha de ter colocado no mundo o seu manancial de ódio. Eu sempre tive boas notas no colégio e nunca saí à rua para agredir ninguém. Com a mesma idade do seu filho, eu estava lendo o melhor da literatura brasileira, escrevendo e dirigindo peças de teatro, assistindo a ótimos filmes, nunca quis e nem tive tempo de ir pra rua para agredir seja lá quem for. E a que raios de atitude infantil a senhora se refere? Deixe as crianças fora dessa sujeira! Assuma que falhou como mãe, é bem mais fácil de acreditar. Espero que a Polícia de São Paulo, por quem tenho grande respeito, não deixe esses babacas sem uma boa lição. Em pensar que o artista plástico Flávio de Carvalho já andou de SAIA, pasmem agora!, na mesma Av. Paulista, em meados dos anos 50, e sequer levou uma pedrada, uma ovada, tomatada, nada disso. Alguém poderia me responder o que está acontecendo com essa juventude pra ser, assim, tão covarde e burra?

Outro assunto bem chato e que também esteve na pauta de discussões desta semana foi aquele texto assinado pelo chanceler Augustus Nicodemus Gomes Lopes, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das mais tradicionais do país, dizendo que a entidade de ensino que representa é contrária ao projeto de lei que criminaliza a homofobia no Brasil, o PL 122. Nesse manifesto, a Mackenzie sugeria que os alunos se guiassem apenas pelos preceitos da Bíblia, focando principalmente a questão da sexualidade. Legal, hein? Primeiro é aquele linchamento da garota da minissaia, na UNIBAN (lembram?), depois é a volta da Idade Média proposta pela Mackenzie. É o progresso, minha gente! Eu não vi, por exemplo, nenhum texto desse chanceler ou de qualquer outro reitor, fora Mozart Neves Ramos, propondo alguma coisa para melhorar a deficiente educação brasileira. Se os presbiterianos da Mackenzie se acham no direito de dar pitaco nas questões políticas do país – e a péssima campanha eleitoral só serviu para reforçar esse mecanismo –, por que não o fazem em assuntos que lhes dizem respeito, que fazem parte do meio acadêmico? Ou será que algum aluno da Mackenzie não sabe ainda que estuda numa universidade protestante? Por favor, Márcia Tiburi, se pronuncie a respeito. É o mínimo que esperamos de você. Nem que seja para dizer que não compactua com o pensamento do seu patrão, embora pedir as contas você não deva fazer.

Queria colocar na roda também aquele princípio de “censura” ao livro do Monteiro Lobato, “Caçadas de Pedrinho”, mas esse é outro assunto que renderia um post inteiro. Então vou parando por aqui, mas quero reforçar que: ninguém é obrigado a gostar de ninguém, mas tem o dever de respeitar. Não estou aqui para levantar bandeira nenhuma também, nem gosto disso, vocês nunca viram um post meu com esse intuito, mas, se muitas pessoas estão usando também a internet para promover o ódio, nós, pessoas sensatas, de bem, cumpridoras dos nossos deveres, temos a obrigação de repudiar isso. E, quando uma universidade como a Mackenzie se coloca contra um projeto de lei que, aprovado, só ajudaria nesse sentido, é porque nem sequer saímos do atraso. Uma pena. A minha campanha é pelo livre-arbítrio, já! Alguém vai aderir?

terça-feira, 16 de novembro de 2010

MONSIEUR PLAS




Se você assistiu ao filme Bonequinha de Luxo, deve se lembrar daquela famosa cena em que Audrey Hepburn namora as vitrines da Tiffany, na 5ª Avenida, em Nova York. Eu nem tinha assistido ao filme ainda e Audrey nem fulgurava entre as minhas musas favoritas do cinema, quando cheguei a protagonizar algo semelhante. Claro que eu não me pareço nada com a atriz (nem pretendo), nunca estive em Nova York e minha paixão nunca foram as jóias, o que realmente balançam os meus bolsos, fora livros e revistas, são os... chapéus. Isso mesmo. Quem me conhece sabe a paixão que tenho por eles. E foi namorando as vitrines da chapelaria Plas, no baixo Augusta, em janeiro de 2006, que conheci o seu proprietário, monsieur Plas, um francês de 83 anos, muito elegante e simpático, cheio de ótimas histórias

Assim que parei em frente à chapelaria, fui logo atraído por suas vitrines e comecei a desejar aqueles chapéus maravilhosos. Era uma manhã tranquila de verão e as pessoas começavam a ganhar as ruas em direção ao trabalho. As prostitutas e os bêbados, tão comuns naquela parte da Augusta, já tinham se recolhido ou se confundiam agora, trôpegos, entre os passantes. Eu é que continuava lá, olhando fixamente para tantos e variados modelos, seduzido por uma boina que me transportou imediatamente ao filme O Grande Gatsby – aquela versão cinematográfica dos anos 70, com Robert Redford, para o clássico de F. Scott Fitzgerald , por isso nem me dei conta quando a porta se abriu. Era Robert, filho de monsieur Plas, me convidando para entrar e ver de perto qualquer um deles. Fiquei realmente tentado a aceitar o convite.
Mas, depois de uma consulta rápida de preços, disse-lhe que voltaria numa outra oportunidade, que sempre estava envolvido em projetos teatrais e que, certamente, algum dia, um de meus personagens usaria um daqueles lindos chapéus. Robert então, gentilmente, me ofereceu um folheto que contava a história do seu pai. Coloquei o papel na minha mochila e saí deslizando pelo Centro. Chegando em casa, afixei o folheto à porta da minha geladeira. As pessoas sempre me perguntavam quem era o velhinho simpático da foto e eu lhes explicava muito entusiasmado a sua história, mas poucas se interessavam por ela de verdade. Por conta disso, imaginei que aquela reação era um termômetro do reconhecimento das pessoas pelo trabalho de monsieur Plas, que raras apreciavam a sua arte, mas o tempo me provaria que eu estava completamente enganado. Ainda bem.

Em agosto deste ano, abro a Folha de S. Paulo e quem está lá? Isso mesmo. O próprio. Acompanhado de seus dois filhos, Maurice e Robert. Muito sorridente, monsieur Plas estampava uma matéria sobre lugares “intocados” de São Paulo. Corri imediatamente os olhos no texto e descobri que a chapelaria existe, desde 1954, quando exibia a placa “Costureiros de Paris”. Sempre no mesmo lugar. Fugindo da Guerra Fria, nosso personagem chegou ao Brasil pelo porto de Santos, em 1951. O seu irmão, que já morava no país, descrevia o Brasil como um lugar de “muito sol e moças bonitas”. Aliás, para se proteger do sol inclemente dos trópicos, monsieur Plas aderiu aos chapéus, mas foi apenas por influência do ator Tarcísio Meira que passou a produzi-los. Chama atenção o fato dele se orgulhar de nunca ter feito uma liquidação: “Quando você trabalha com arte, acho errado liquidar o que faz”.

Há pelo menos uns dez anos, a chapelaria Plas vem recebendo um público mais jovem, mas a sua clientela é também bastante variada, com destaque para personalidades da música como Edgard Scandurra, Ed Motta, Cauby Peixoto, Nando Reis e até a cantora australiana Kylie Minogue. “Veio aqui uma loirinha bonitinha, simpática. Depois fiquei sabendo que era ela” – deixa escapar o modesto Robert. A modelo Gisele Bündchen também já esteve lá fotografando com Bob Wolfenson e o presidente Lula foi votar, nas últimas eleições, com o seu panamá importado pela chapelaria.

A história de monsieur Plas se confunde com a de muitos outros imigrantes que vieram para o Brasil trabalhar com moda – Estevão Brett, Moises Frajhot, Rudy Davidson, David Liberman, entre outros –, mas com um diferencial, ele não sucumbiu aos modismos e tampouco aos caprichos do mercado – mesmo em momentos de crise – e também nunca esqueceu o passado, seja no modo impecável de se vestir ou na sua rara filosofia que dialoga tão bem com aquele pensamento de Godard: não existe resistência sem memória. E não faz muito tempo que retornei à sua chapelaria, para uma rápida visita. Ele estava concentrado no seu livro de yoga, o jornal repousando ao lado. Queria lhe perguntar se tinha assistido à Alice, o que achava do Chapeleiro Maluco. Não trocamos palavra. Mas também não foi dessa vez que eu compraria o meu tão sonhado chapéu, assinado pelo elegante monsieur Plas.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

AO CAIO, COM CARINHO


Pouco antes de morrer, em 1996, alguns amigos presentearam o escritor Caio Fernando Abreu com um computador portátil. Ele ficou fascinado com o presente – uma novidade na época –, mas talvez não imaginasse que, tempos depois, a sua obra seria amplamente divulgada ali. Muitos textos do escritor se multiplicam, todos os dias, nas principais redes sociais e blogs, numa velocidade estonteante. Fenômeno parecido, guardada as devidas proporções, só mesmo o da escritora Clarice Lispector, por quem Caio nunca escondeu ser bastante influenciado. Ela o chamava de “nosso Quixote”, numa referência à sua indisfarçável magreza. Informações como esta estão no livro “Para Sempre Teu, Caio F.”, da jornalista Paula Dip, uma das grandes amigas dele e para quem ele dedicou um dos contos do livro “Morangos Mofados” (1982). Embora seja uma “biografia afetiva”, um testemunho da amizade dos dois, é a primeira vez que se revela a intimidade do escritor dessa maneira. E só por isso já valeria a pena.

O prefácio é assinado pela escritora e dramaturga Maria Adelaide Amaral, que conheceu Caio no final dos anos 70. Ela ganhou dele o apelido de “Levinha” e ele, possivelmente, a teria inspirado o provocante Beny, de “Aos Meus Amigos” (1992). Maria Adelaide relembra os melhores momentos da amizade dos dois e reproduz um trecho de uma carta de Caio que ela nunca esqueceu. Depois de assistir, aos prantos, a peça “De Braços Abertos” (1984), da dramaturga, ele lhe escreveu comovido: “O que acontece comigo é que eu tinha andado de braços fechados. Sem perceber”. Em outro parágrafo da carta, que lamentavelmente não consta da biografia, ele desabafa: “Dá vontade de amar. De amar de um jeito ‘certo’, que a gente não tem a menor ideia de qual poderia ser, se é que existe um”. Esse tom melancólico, tão comum aos textos do escritor, aparece também na narrativa de Paula Dip. A impressão é de que por trás de cada capítulo existem também algumas lágrimas: de saudade do Caio, evidentemente, mas também do apagar das luzes do século 20, daqueles anos “loucos”, “perdidos”, de intensa agitação.

Caio e Paula Dip se conheceram, às vésperas dos anos 80, em redações de revistas e, até a morte precoce do escritor, quase vinte anos depois, nunca se afastaram. Quando a presença se tornava impossível, entrava em cena uma troca afetuosa de cartas. Essa correspondência é o ponto alto do livro, traz gírias da época (algumas criadas pelo próprio escritor), indicações de músicas, citações literárias, referências à Astrologia (Caio era um exímio conhecedor do assunto), roteiros de viagem e, principalmente, muito humor. Antes de refazer a trajetória do amigo, a jornalista recorreu à irmã dele, Cláudia Abreu, que lhe abriu “a casa e o coração” e permitiu que ela tivesse acesso a recordações que só a família possui. Entrevistou também os muitos amigos e colegas de Caio, revirou o seu baú particular, reconstruiu a época com recortes de jornais e revistas e ainda contou um pouco da sua própria história. O resultado não poderia ser melhor: um texto leve, preciso, inconfundível na sua abordagem pop e com tudo para agradar à crescente legião de fãs do escritor.

Caio F. (como assinava aquelas cartas) nasceu na cidade de Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, em 1948. Ainda jovem se transferiu para Porto Alegre e, lá, publicou seus primeiros contos. Assim como Fernando Pessoa, também ingressou, mas não concluiu o curso de Letras. Trabalhou como jornalista em importantes veículos de comunicação, mas estava sempre em dificuldades financeiras e nunca teve pouso certo. Em 1973, cansado do clima repressor no Brasil, foi para a Europa e só retornou depois de um ano. De volta ao país, se estabeleceu mais ou menos em São Paulo, cidade com quem mantinha uma relação de amor e ódio. Depois de uma breve temporada na França, em 1994, quando viu despontar sua carreira internacional, retornou a Porto Alegre, mas dessa vez já estava debilitado pela AIDS, doença que o venceria no dia 25 de fevereiro de 1996. Deixou uma obra repleta de personagens marcados pela paixão e que fazem sucesso até hoje.

A escritora paulistana Márcia Denser acredita que a morte prematura dele, aos 47 anos, o privou de transcender a questão do gênero, na sua ficção. É inevitável que esse tipo de questionamento não esbarre na inútil discussão sobre a existência de uma literatura gay que o aprisione. Difícil prever também os novos rumos da ficção de um escritor como ele, não só pela sua personalidade moldada a “Cântico negro”, de quem só ia aonde lhe levavam os seus próprios passos, mas também porque Caio era o seu texto, no sentido cartesiano da palavra, como defende o editor Pedro Paulo de Sena Madureira. É preciso ler a biografia para não confundir o escritor – incansavelmente comprometido com a sua literatura de cunho universal – com o personagem Caio F., debochado, que usava expressões como “de salto alto e decote profundo”, atento a banalidades, ferino, etc. O que fica para a posteridade é somente o escritor. E como ele não vai voltar, cabe agora aos seus leitores atender a um de seus desejos mais recorrentes: amá-lo por alguma coisa que escreveu.

Resenha e ilustração para o site Aplauso Brasil - IG

domingo, 17 de outubro de 2010

NÃO HÁ NADA DE NOVO

A política não é a coisa mais importante, é apenas a que mais sai nos jornais. Exatamente porque os donos dos jornais são políticos. O problema político é impedir que os homens de negócios tomem o poder. Nietzsche



Bocejo. Antes mesmo da campanha eleitoral começar, vim aqui bastante entusiasmado registrar as minhas expectativas, porque, de fato, esperava uma “corrida ao ouro”, empolgante, com ampla discussão de programas de governo e com uma participação calorosa dos internautas. Claro que também torcia por uma briguinha ou outra entre os candidatos, afinal faz parte do jogo político, do folclore das campanhas, mas não esperava esses debates mornos, sem graça, com o verbo no passado imperando. Nem Proust chegaria a tanto. Os internautas continuam fazendo sua parte. Recebo, diariamente, e-mails pró e contra os dois candidatos. As redes sociais das quais faço parte viraram palanques disputadíssimos, mas ainda estou em cima do muro, curtindo a minha mudez “verde”. Para os que me acusam de pessimista, digo apenas que conservo aquela expectativa de final de novela das oito (aquelas de antigamente, claro), esperando uma reviravolta a qualquer momento. Aliás, infelizmente, nem posso assistir à segunda reprise de Vale Tudo, mas já li que a novela está “bombando”, nas madrugadas. Essa novela do Gilberto Braga esteve no ar sempre em momentos políticos decisivos. Em 1988, no ápice do processo de redemocratização e, em 1992, no bota-fora do ex-presidente Collor. Voltou agora, em 2010, nas (?)...

E nem a alta popularidade do presidente Lula tem assegurado à candidata petista uma folga nas pesquisas. Muito pelo contrário. Nada está decidido até o momento. Ninguém pode cantar vitória. Mesmo assim, o discurso dela ainda está amparado nas conquistas sociais do governo atual. Só falta mesmo, depois de exausta, desabafar: “Vocês não entenderam ainda? Eu sou o Lula, amanhã”. Não ficarei nada surpreso, mas, ainda assim, não me convencerá, porque ela não tem o carisma indisfarçável do presidente. Sem contar que tem tanta dificuldade para sorrir quanto um Rubem Braga. E o que pra mim é o mais grave, a sua imagem ainda é muito dura para um país que historicamente está ligado a figuras femininas afetuosas, leiteiras: à mãe lusitana que nos concedeu o bem maior da “descoberta” e da civilização, à mãe África que nos deu seus “trabalhadores” fortes e inesgotáveis e, finalmente, à Nossa Senhora Aparecida a quem os cristãos católicos clamam sempre, na hora do desespero. E foi para a Igreja que Dilma se voltou, quando desmentiu, às vésperas do primeiro turno, ser favorável à descriminalização do aborto. De feminista poderosa se transformou numa carola do século passado. O aborto ganhou a gravidade de uma peste negra e esteve nos discursos mais hipócritas. E não me espantaria saber que milhares de aborteiras, país afora, correram para algum confessionário, receosas de que não chegariam ao Céu.

O candidato tucano José Serra, certamente, deve ter lido “Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas”. Conseguiu conquistar o apoio da classe-média alta, tem feito a cabeça de boa parte da classe artística e é visível que ganhou a simpatia dos principais meios de comunicação. E isso, para o bem ou para o mal, conta muito. Até decisivamente. A história está aí para provar. A campanha dele passou a ser mais agressiva, o seu discurso até sugere mais segurança, mas também tem lá suas falhas. Defende, por exemplo, o ensino técnico, com ênfase, mas não consegue explicar o colapso no ensino público do estado que governou. Não admite que o seu partido errou ao criar e insistir na “progressão continuada”. Atira para todos os lados com promessas salvadoras. O grevista de amanhã pode ser o seu eleitor, no dia seguinte. E com o apoio de um famoso líder messiânico, uma espécie de Flávio Cavalcanti do protestantismo brasileiro, não deve se livrar de uma saia justa com o seu eleitorado mais “moderninho”. Pra mim, esse tipo de associação soa meramente eleitoreiro, oportunista. Política e religião nunca deveriam se misturar. É muito poder concentrado. Não vi também com bons olhos o “santinho” do tucano sendo distribuído com o carimbo da Igreja Católica. Espero que isso não seja um recado a la “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.

O sono chegou. E não vou poder acordar só depois do segundo turno. Amanhã, as pessoas não terão nada de extraordinário para comentar sobre o debate. Ninguém com ânimos exaltados, na padaria. Nem vivemos mais esses tempos radicais, não é mesmo? Nietzsche tem toda razão, “a política não é a coisa mais importante, é apenas a que mais sai nos jornais”. E eu não comprarei os jornais, amanhã. Talvez releia “Diretas Já!”, do Henfil, e comemore o único consolo possível: “Vivemos numa democracia!”. Ou quem sabe ouça “Imagine”. Bem alto. Mas insisto, não há nada de novo.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

PRIMAVERA

Um cheiro sufocante de rosas enchia de peso o ar, rosas malditas na sua força de natureza doida, a mesma natureza que inventava as cobras e os ratos e pérolas e crianças – a natureza doida que ora era noite em trevas, ora o dia de luz. Esta carne que se move apenas porque tem espírito. C.L.




Meu pai ainda insistiu. Eu disse que não. Era uma tontura passageira e eu logo estaria encarando a cidade de igual para igual. Não teria problemas. Ele viu que eu tropeçava em mim mesmo. Cambaleava. Também não estava bêbado, se é que alguém pensou nessa posssibilidade. Efeito talvez de alguns remédios. Não, também não eram balas dessas que quase paralisam as pessoas em festas intermináveis. Ele quis que eu fosse de carro. Ou chamasse um táxi. Mas não era tão longe. Até me seguiu para ver se eu mudaria de ideia. Insisti que ele voltasse. Lembrei-me de Judas dizendo “todos passam a mão na sua cabeça”. Declinei o convite na hora. Não por causa de Judas, claro. Mas por achar que ainda tinha alguma dignidade. Meu pai me levaria de carro aonde quer que eu fosse, porque a sua bondade não conhece limites. Mas voltando... Não. Eu não gosto de dar trabalho, trago comigo essa coincidência com a escritora Lygia Fagundes Telles. Numa entrevista à Clarice Lispector, acho que para a saudosa Manchete, Clarice logo lembrou que Lygia nunca dava o menor trabalho. Eu sou assim também. Tenho pavor de que me levem nas costas.

Hoje choveu um pouco. E à noite, quando saí, principalmente. Saio quase sempre à noite. Caía uns pingos tímidos que nem me convenceram a levar um guarda-chuva. Então tomei um ônibus. Lotado naquele horário. Estava tão imerso em coisas “ruins”, com o sono acumulado dos últimos dias, que mal notei quando uma senhora me pediu licença. E quando ela o fez e eu vi que estava com uma criança, no colo, tive um susto. Uma criança absurdamente linda. E aquela criança provocou em mim uma imensa felicidade. O meu ou o seu nome poderia ser Felicidade. Aliás, quando volto para comprar aquele Katherine Mansfield? Espero que ainda esteja lá, à minha espera. Mas o livro que fui buscar foi “Noites Tropicais”, do Nelson Motta, emprestado gentilmente pelo querido Tássio Marques, a pretexto de uma pesquisa para um monólogo que me encomendaram. Ele me indicou tudo certo, número, rua, prédio, mas eu me perdi. Eu quase sempre me perco à noite. É como se a escuridão gostasse de brincar de cabra-cega comigo. Como se ela visse algum prazer infantil nisso. E eu quase sempre concedo. Eu entrava numa rua, saía por outra, supermercados tão parecidos, postos de gasolinas, a chuvinha intermitente... Parei exausto e atônito, numa esquina. Coloquei o meu capuz para me proteger. Levei as mãos nos bolsos e constatei que esqueci o celular. Ali na rua, a minha impressão era de que estava em algum lugar totalmente desconhecido, Pompeia ou Xangai, por exemplo. Xangai não, porque não fazia aquele calor absurdo. Vendo-me um tanto perdido, confuso, um rapaz se aproximou. Um bonito rapaz. Moreno. E notei que ele usava brincos, porque tenho memória visual. Talvez quisesse me conduzir pelo braço, mas poderiam achá-lo muito estranho. Me contentei em perguntar-lhe onde ficava aquele endereço. Ele me disse que a duas quadras e que dali mesmo eu já poderia ver o prédio. Agradeci humildemente e segui para o meu compromisso. Duas mocinhas seguiram o mesmo trajeto. O rapaz sumiu na paisagem. Vi porque ainda o olhei por detrás. Uma mocinha conversava com a outra as maiores banalidades dessa idade, os prêmios da MTV, se não me engano. Houve um momento em que uma delas quis saber da outra: “você sabia que já é primavera?”. Levei outro susto. Eu havia me esquecido completamente! E aquilo me encheu de esperança e pensei até em passar em uma floricultura e comprar uns girassóis ou violetas, gérberas cor de fogo... Margaridas. Cravos que é a flor do meu signo e do poeta Martins Fontes. Tudo menos rosas. Porque tem espinhos.

domingo, 19 de setembro de 2010

APEGO

A minha intenção não era postar nada ficcional. Não por enquanto. Sobretudo depois de "Aquele e o Outro". Aliás, muitíssimo obrigado pelos comentários. Estava me sentindo oco, mas como essa história "Apego" me veio, assim, de súbito, achei que não teria por que não postá-la. Até muda um pouco o foco do Blog, enquanto preparo outros textos menos pretensiosos. E também é bem curtinha. Um roteiro de curta-metragem, para ser bem sincero. E um pouco mórbido, já adianto, mas a mensagem é certeira, fala de apego a coisas materiais, vaidade e falsas amizades. Assunto na crista da onda. Não sei. Algo pra se pensar. A imagem linda que o ilustra é de Joannis Mihail Mouda. O texto é dedicado ao meu amigo Paulo H. Moura, por tudo que ele tem passado silenciosamente em São Paulo.


"No amigo deve vislumbrar-se o melhor inimigo. Deve ser você a glória do seu amigo, entregar-se a ele tal qual você é? Pois é por esse motivo que o manda para o inferno!" Nietzche

01 INT. QUARTO. NOITE.

Penumbra. Lindauro abre um guarda-roupa muito antigo. Quase não há nada dentro. Para um instante. Decide-se. Pega o paletó preto. Novo. Ainda no cabide, o coloca sobre si mesmo. Mira-se no espelho lateral. Namora-se. Madalena, enrolada num chale preto, vem entrando...

MADALENA

...Dona Celeste mandou pedir o paletó.

LINDAURO

...Vou usá-lo no velório. Aliás, eu já ia me trocar.

MADALENA

...Ela falou que na casa do Eliaquim não tem uma roupa que preste.

LINDAURO

...E eu com isso?

MADALENA

...A família dele é muito pobre. E vem gente da Lagoa do Morro.

LINDAURO

...Essa gente vive chorando miséria. Encomenda-se uma mortalha e pronto.

MADALENA

...Mas vocês não eram tão amigos?

LINDAURO

...Eu trabalhei muito para comprar este paletó. Só usei no casamento da Amália. (T) Olha, Madalena. Não fica tão bem em mim?

MADALENA

...Deus dá outro. Quando a gente morre, não leva nada disso.

LINDAURO

...Ah, tá bom. Então não precisa do meu paletó.

MADALENA

...Bem, recado dado.

Madalena deixa o quarto. Lindauro agarra-se ao seu paletó.

02 INT. SALA. NOITE.

Velório. Alta madrugada. A sala ainda cheia. É possível ouvir os sapos coaxando, lá fora. Dona Custódia e seu Malaquias, pais de ELIAQUIM, na cabeceira do caixão. Expressões apagadas. Muito dignos. Eleaquim, no caixão, afogado em flores miúdas. O paletó lá. Novíssimo. Contrastando com a sua pele pálida de jovem morto. Mulheres no rosário. Um cachorro distrai-se com uma mosca. Num canto, Lindauro. Inconsolável. De vez em quando, alguém se aproxima para as condolências de praxe.

ALGUÉM

...Meus sentimentos, meu filho.

Lindauro lança um olhar mortiço sobre o caixão e desaba a chorar.

ALGUÉM

...Ele descansou. Descansou.

03 INT./EXT. SALA/CEMITÉRIO. MANHÃ.

O caixão é fechado. O cortejo segue cemitério adentro. As pastorinhas entoam cânticos religiosos. O coveiro encaixa o caixão na gaveta e, depois, arremata a tampa com o cimento fresco. Alguém deposita algumas flores. Um a um, deixam o local. Lindauro é o último a sair. Ainda lança um olhar fulminante para a sepultura e, em seguida, vai embora.

04 EXT. CEMITÉRIO. CALADA DA NOITE.

Lindauro dá os últimos retoques no reboco. De vez em quando, se assegura de que não vem viva alma. Trabalho concluído. Deita fora a colher de pedreiro. Resgata o seu paletó que repousava num túmulo próximo. Sacode a poeira, veste-se e vai embora. Finalmente feliz.

FIM

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

AQUELE E O OUTRO

“Ternura não é a palavra certa, mas explica melhor essa mistura de gratidão em relação ao corpo de onde se tira o prazer, de doçura que se funde quando o prazer escorre, de lassitude física, mesmo de nojo que nos afoga e alivia, que nos afunda e nos faz vagar de tristeza enfim; e essa pobre ternura, emitida um pouco como um raio cinzento e doce, continua a alterar delicadamente os simples relacionamentos físicos entre machos”. Jean Genet

Foi tudo muito rápido. Da saída do metrô foram direto para um hotel, na rua Augusta. Hotel vagabundo, sem néon na fachada, com uma escadaria escura e dedos gordurosos pelas paredes. Queriam compensar a falta de conforto com, no mínimo, um baseado, mas só foram se lembrar deste, quando já estavam lá dentro. “Uma carreira de pó nos esgotaria imediatamente. Ou cairíamos lado a lado, nus, prisioneiros de viagens muito loucas” – pensou Aquele, o mais imaginativo. O Outro era de uma lucidez irritante. Em qualquer lugar, conversava sobre política e a penúria de viver com um salário mínimo. E recitava uns poemas muito estranhos. Ferreira Gullar talvez. Aquele não prestava atenção em nada disso, só queria acreditar que transar era mesmo muito urgente. Sempre ouvia a voz do amigo lhe incitando a essas investidas: “Você precisa dissolver a sua tristeza em sexo”. Quem sabe trocasse o analista por noites inteiras de pegação no Centro, em saunas, banheiros públicos, praças, embaixo de pontes, ou em praias, motéis, drive-ins, carros, parques, clubes, etc e etc. Seria perfeito viver assim, camuflar com gosto a própria tristeza, dizer adeus aos remédios para dormir.

Seguro da sua privacidade, o Outro foi logo tirando a roupa e se atirou desajeitado na cama. O lençol imediatamente se desprendeu e acabou por revelar um colchão velho e com um forte cheiro de mofo. Aquele ainda ficou olhando para o espaço minúsculo, feio, sem uma única gravura nas paredes, imaginando quantas pessoas já teriam passado por ali, quantos amantes não se renderam ao prazer naquele mesmo lugar, quantos homens não teriam traído suas esposas...

– Eu disse que era podrinho. Não disse? – interrompeu o Outro, com um sorriso nos lábios.

– É que eu nunca vim a um lugar como este. Me lembrou um filme chamado “A Bela da Tarde”.

– Tira logo a roupa.

Tão diferentes. Aquele morava num ótimo apartamento em Higienópolis, estudou no Rio Branco, depois Mackenzie, filho de pais rotarianos, com os dois pés na burguesia paulistana. O Outro se escondia em qualquer lugar do Centro, na São João, na Marechal, em bares ou mesmo embaixo do Minhocão. Aquele era branco, rosto suave, ligeiramente afetado e muito romântico. O Outro era mais maduro, jeitão de antigos comunistas, moreno, barba por fazer, cabelos crespos e sempre querendo mudar o mundo.

– Eu vou ao banheiro...

Não houve tempo. O Outro se aproximou cantando uma música de Chico que Aquele ainda não conhecia: “Vem meu menino vadio, vem sem mentir pra você, vem, mas vem sem fantasia, que da noite pro dia, você não vai crescer”... E Aquele nem notara o sexo do Outro já crispado, sanguíneo, exuberante. Então se apoiou no tronco forte e úmido dele e lambeu obediente as suas mãos viscosas, antes que elas libertassem vorazes os botões da sua camisa. Mas alguma coisa lhe incomodava. O Outro agora apalpava suas intimidades com força e lhe dava leves mordidas no rosto. Aquele até tentava corresponder com algum interesse, mas não conseguia se entregar totalmente.

– Só um minuto – gemeu.

– Não está gostando?...

Num impulso, Aquele se trancou no banheiro. E logo percebeu que ali também não havia nenhum luxo. Apenas azulejos muito antigos, um papel higiênico pela metade, uma pia de porcelana branca e um pequeno sabonete sobre duas toalhas de banho. O espelho oval estava manchado. Tudo muito sem graça. Pobre. Bege demais. Aquele então abriu a torneira e deixou que a água transbordasse nas suas mãos em forma de concha. “Não, não é repugnância. Talvez medo. Mas é preciso realizar o ato. Com ou sem dor. ‘Ela toca a doçura do sexo, acaricia a novidade desconhecida’. Acho que é ‘O Amante’. Agora não sei”... E banhou o próprio rosto. Da cama, o Outro quis saber se estava tudo bem.

– Sim, já estou indo – respondeu Aquele, apressado.

– “Quem bate à minha porta tem que aceitar o que ofereço”. – Afinal, você quer ou não quer? – gritou impaciente.

– Precisava me refrescar – se justificou.

Para não aborrecer o Outro, Aquele tomou logo o seu lugar na cama e se posicionou para agradá-lo. Antes, porém, lhe fez uma única exigência: apagar as luzes. E mesmo não se sentindo único, querido ou especial, se entregou sem demonstrar um laivo sequer de tristeza. O Outro então puxou para si o corpo delicado que se oferecia e, minutos depois, completamente saciado, caiu como um javali faminto que acaba de devorar uma plantação inteira de milhos. Seguiu-se um breve e incômodo silêncio, interrompido apenas quando o Outro se levantou e foi direto para o banho. Sozinho, perplexo diante do próprio abandono, Aquele fez que nada entendeu, mas estava lá, estampada em seu rosto, a sua profunda decepção. Logo ele que tinha tão viva, na memória, uma imagem de Mapplethorpe que sempre lhe causava comoção, a de um rapaz numa posição bastante vulnerável, à espera de ser penetrado ou abandonado depois de – adorava essa ambigüidade –, mas sabia que ela despertava nas pessoas mais risos, pelo ridículo da cena, do que compaixão. Aquele nunca riu daquela fotografia e a piedade que ela sempre lhe causou só não era maior da que agora sentia por si mesmo. No banheiro, uma ducha fresca deslizava agradavelmente pelo corpo do Outro, enquanto ele buscava na memória a letra inteira de “Dia Branco”. E bastava errar uma nota ou um verso da canção, para começar tudo de novo: “...Se branco ele for, esse pranto... Esse pranto?... Ou esse tanto de amor?... Se você vier, pro que der e vier, comigo...”.

Aquele, que se sentia agredido na carne e na alma, se lembrou novamente de “O Amante” e agora lhe vinha à cabeça um trecho inteiro do livro, vírgula por vírgula: “Não há sujeira, a sujeira está encoberta, tudo é levado pela torrente, pela força do desejo”. Repetia a si mesmo, na tentativa de não se arrepender do que fez. Mas não adiantou. Estava com raiva. Cansado de tanto desperdício de prazer sem ternura. Dos que se satisfazem e vão embora. De bocas estranhas, imundas, que beijam sem nenhuma paixão. De homens igualmente estranhos e imundos que, quase sempre, lhe ferem sem nada dizer. “Até quando vai ser assim, meu Deus? Até perder o gosto pelo prazer? Até não existir mais prazer?” – disse, dentro de si, cheio de revolta. E depois começou a se virar na cama tentando esmagar os próprios pensamentos e reter uma lágrima que insistia em brotar.

– Você não vai se lavar? – disse o Outro, saindo do banheiro.

A pergunta chegou Àquele atravessada, infeliz, como um desses desaforos que só machucam. “Por que não me perguntou ‘posso cuidar de você’? Lavar??? Por Deus!!! Como se eu fosse uma cueca velha. A sua cueca velha e encardida. Esse é o tipo de homem que eu recebo dentro de mim. Eu sou mesmo um idiota com i maiúsculo...” – e continuaria ainda se punindo em silêncio.

– Estou falando com você – interrompeu o Outro, confuso.

– Com licença. Vou tomar o meu banho – disse sublinhando o “meu banho”, entre seco e irônico.

O Outro não entendeu nada e nem se esforçou para fazê-lo, queria logo se espalhar na cama e dormir, dormir, dormir. Já embaixo do chuveiro, enquanto a água corria sem pressa, Aquele fechou os olhos e se imaginou dentro de uma incrível banheira, dessas de capa de revista, repleta de detergente. Odiaria, sobretudo, acordar no dia seguinte e ainda encontrar algum vestígio da baba viscosa do Outro. Do seu líquido seminal. “Me senti uma mercenária do sexo. Até elas devem receber mais carinho do que eu” – dramatizou. Enquanto isso, o Outro dormia pesado. E roncava. Alto. E era patética a sua cara de homem feliz, com a sua triste arrogância sigilosa.

Aquele até reconhecia que o caráter urgente do sexo lhe facilitava alguns equívocos amorosos, mas dividir novamente a cama com o Outro não fazia o menor sentido, ultrapassava a sua tolerância à falta de carinho e gratidão para com as pessoas. Só lhe restava então uma única alternativa: sair dali imediatamente. E, em cinco minutos, não mais do que isso, ele ganhou as ruas de São Paulo outra vez. O vento agora acariciava o seu rosto. As pessoas passeavam felizes, ao seu lado. Ele próprio esquecera que era sexta-feira à noite. Que se chamava Paulo Ribeiro de Carvalho. Que uma cama macia e dois travesseiros o aguardavam, ali perto. Um golden retriever também. E aquela sensação de alívio logo se transformou na alegria de saber-se livre do Outro. Pensou ainda em sair dançando. Ou entrar no Athenas e pedir um drinque. Ou um suco de melancia com gengibre e sem açúcar. E, em casa, agiu como se nada tivesse acontecido. Tomou um novo e demorado banho, vestiu o seu confortável pijama, entrou em seus sites de relacionamentos favoritos, consultou a agenda cultural para o final de semana, planejou almoçar com os amigos, diminuiu o ar condicionado... Sentiu-se exausto e adormeceu. E nem se lembrou de tomar o seu remédio para dormir.