sábado, 18 de dezembro de 2010

O CORAÇÃO NO ASFALTO


“Olhar é um ato criador”.

Toda semana, Divina fazia aquele mesmo trajeto até em casa. Depois do expediente na fábrica, voltava sempre em linha reta. Nunca ousara experimentar outros caminhos, a esperança estava em algum dia ser recompensada pela sua retidão. Evitava até olhar para os lados. Pra quê?, sempre as mesmas paisagens. Não havia o menor interesse nas pessoas. Também, não lhe davam um único sorriso. Melhor então que fossem para sempre anônimas. Com alguma sorte, numa fila de banco, palavras vagas: “Que calor, não acha?”, no que ela concordava irrefletidamente. Nunca alguém a lhe pedir ajuda ou uma informação. Qualquer coisa para que se sentisse útil. A cabeça sempre pendida puxava o seu olhar para baixo, “Levanta essa cara, menina”, palavras da mãe nervosa que deixou em Mato Grosso. O vestido ultrapassando os joelhos lhe dava um ar infantil. Falso, mas infantil. Os cabelos sempre presos atrás daquelas orelhas pequeninas e mortas. O rosto trágico. O único sinal de vaidade era a correntinha de ouro com o pingente de cristal. Presente do pai. Confundia quase sempre humildade com pobreza. Divina caminhava um dia pela Guarani, quando encontrou uma carteira no chão. “De quem será?” – disse a si mesma numa expressão meio apagada. Olhou em torno e não viu ninguém que demonstrasse estar à procura do objeto. Uma carteira de couro vagabundo. Teve medo de entrar num daqueles bares e procurar pelo dono: “Podem mexer comigo. Deus me livre!”. Num ato de desespero, colocou a carteira dentro da sua bolsa e seguiu para casa. “Sou uma ladra. Acabo de roubar uma carteira. Sou uma ladra” – e repetia “ladra” acreditando ser mesmo uma. No vagão do metrô, sentou-se lentamente, o tempo todo lhe pesando a consciência. Tinha a impressão de que os passageiros sabiam do seu crime. Não só sabiam como se recusavam a puni-la. Por pena, o que era pior. Nunca ninguém lhe devotava respingos de amor ou ternura, apenas a compaixão crua, a obrigação escondida no “amai-vos uns aos outros”.
Divina morava num apartamento pequeno e modesto, no centro de São Paulo. Primeiro andar. Tinha pavor de altura. De elevador. De assalto. De tudo. Logo que chegou em casa, procurou descansar. Estava exausta. As pernas moles e muito finas se gastavam à toa. Quis logo abrir a bolsa, mas Carlos Magno estava faminto. Carlos Magno era o gato de rua que a aceitou indulgente como a sua dona e só por isso morava com ela. Entrava e saía pela sacada sem a menor cerimônia. Agora estava com fome e Divina tinha que ir se arrastando até a cozinha para pegar o seu leite. Ao colocar o leite do bicho na sacada, percebeu que já era noite. Carlos Magno não cabia em si de tanta felicidade. Ela, por sua vez, não conhecia nem a felicidade de si mesma. Evitava-se ao máximo. Tinha vergonha de se ver e não se gostar. Não usava batom e nem pó compacto (era do tempo do pó compacto). Mas tinha a pele morena, o que já lhe era algum luxo. Naquele dia, concentrou-se apenas no que chamou de “meu roubo”. Porque precisava de perdão, acreditou mais uma vez que era realmente uma ladra. Se não fosse o barulho da língua de Carlos Magno tocando o pires, perceberia o dilacerante silêncio que fazia ali dentro. “Tá pensando na morte da bezerra?” – interromperia mais uma vez a voz metálica da mãe. Quando deu por si, já estava abrindo a bolsa. Primeiro tocou vacilante a carteira achada e só depois vasculhou tudo que havia lá dentro. Algumas notas de dinheiro. Os documentos. Canhotos de compras. Cartões de lojas da Florêncio de Abreu. Um bloquinho de telefones... Chamava-se Floresberto. E guardou tudo novamente num impulso de ladrão pego em flagrante. “Além de roubar, também vasculho a vida alheia. Sou mesmo uma bela bisca”. E continuou se culpando. Talvez fosse melhor dormir, mas o sono nunca vinha quando queria. Não tinha fome também. Só conseguia pensar na foto de Floresberto. Moreno. Olhar debochado. Cabelos de recruta. “Dizem que o couro cabeludo do homem é muito mais oleoso que o da mulher” – e achou graça daquela informação inútil vir, assim, tão sem-hora. Talvez andando de um lado a outro do apartamento o sono viesse. “As noites me parecem perigosas, apenas com a vantagem de serem mais tolerantes” – era um bonito pensamento, até quis tomar nota, mas desistiu logo em seguida. Começou então a andar desesperada pela sala, como uma peregrina ao encontro de Deus. Onde estava mesmo Deus? As pernas quase se partindo. Tropeçou no tapete e machucou a testa. Nada grave. Era o seu próprio corpo oferecido a Ele em holocausto. O sono, enfim, chegara. Sono leve, nada de Floresberto: “Já sonhei tanto com quem não presta. Quando a gente quer um sonho bom...” – já despertou resmungando. E levantou da cama com aquela sensação de mal-estar, de ter deixado o dia anterior inacabado. Perturbava-lhe, desde ontem, a imagem de Floresberto. O ontem a esmagava. Os seus pensamentos iam e vinham, mas sempre paravam nele: “O nome seria a mistura de Flores e Alberto ou Flores e Adalberto?” – questionava-se. A vantagem de ser, assim, tão inútil era poder reconhecer a sua pobreza de espírito, mas isso ela já fazia muito bem, obrigado. Tomando para si a carteira de identidade do rapaz, ficou um bom tempo olhando a foto dele. Depois voltava a escondê-la porque temia os seus próprios pensamentos “pecaminosos”. Mas logo a resgatava da gaveta e tudo recomeçava outra vez. Queria amar Floresberto. Estava decidida. Amar com a intensidade de quem ama pela primeira vez. Ele a inaugurara para o amor. Tinha que ser ele. Seria ele. A faxina do sábado foi feita na presença dele. O pequeno pão com sardinha e o copo de Fanta foram degustados sob o olhar intacto dele. Se não percebia as moscas sobre os restos do pão era tão-somente por distrair-se pensando nele. Já o faminto Carlos Magno conheceria pela primeira vez a indiferença. O seu reinado chegara ao fim. Divina agora apenas o suportava. Nada mais.

E as horas passaram depressa. No domingo pela manhã, ela decidiu ligar para ele. Havia um telefone no bloquinho de endereços e também o nome da rua, o número da casa, o bairro, etc. “É mesmo o Destino ou prevenção?” – indagou-se, antes de descer as escadas. Ainda vacilou diante do orelhão, na esquina, mas sobressaiu o seu desejo incontido de ouvir a voz do “seu homem”. Pouca coisa, mas tudo em sua vida não era sempre assim, tão pouco?. “Alô? Alô?? Alô???” – Floresberto, impaciente diante da mudez de Divina, desligou o telefone e voltou a dormir. Ela, ao contrário, chegou em casa com a sua recente felicidade desesperada. A voz dele era bonita. Grave. De homem. Ligou o pequeno rádio e procurou uma música qualquer. Não sabia dançar, mas se imaginou dançando com ele. Uma valsa. E saiu à procura de algum espelho. Pela primeira vez gostou de se ver. Não era de fato feia. Também não era bonita. Passou a mão no cabelo como quem faz um carinho. Imitou algumas poses de revistas. Imaginou a sua boca com um vermelho intenso, sedutor. Os olhos muito pretos, sombreados. Voltou a pensar numa presilha para o cabelo. Não os queria tão presos quanto antes. Procurou no guarda-roupa um vestido estampado. Tinha apenas um. Flores bem miudinhas. A sandália rosa estava de bom tamanho. Pronto. Esticou cuidadosamente a roupa no sofá. Escolheu até uma “combinação” nova. Não que Floresberto fosse vê-la despida já no primeiro encontro, mas Divina queria se saber usando uma calcinha e sutiã novos.

Na segunda-feira, no primeiro horário, ela seguiu para o Jabaquara. No metrô, abriu com cuidado a carteira e olhou de relance para a foto de Floresberto. “Ah, meu Floresberto!” – suspirou. Estava se sentindo uma mulher de verdade, sobrando em predicados. Atravessou a estação e foi até um taxista parado ali perto. Disse onde queria ir e entrou no táxi: “Não posso desistir agora”. As mãos suando. Tantos planos para os dois. O primeiro final de semana seria na praia. Sempre quis ver o mar, mas ninguém nunca a convidara para um passeio em Santos. Os verões se repetiam e ela sempre trancada naquele seu velho aquário. “Foi assim, como ver o mar / A primeira vez que meus olhos / Se viram no seu olhar” – cantarolou bem baixinho. Imaginava cada detalhe do corpo dele. Sentia calafrios. “Passando mal, moça?” – interrompeu o taxista. “Não, senhor. Uma indisposição passageira” – disfarçou, se recostando no banco. Minutos depois, ela já estava em frente à casa de Floresberto. Aproximou-se do portão. Recuou. Foi parar no outro lado da rua, a pretexto de observar melhor o imóvel. No fundo sabia que era o medo do desconhecido. A casa era simples, mas bem cuidada. Tinha um pequeno jardim com roseiras. Um painel de azulejos com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. “E ainda é religioso!” – estava com sorte. “O nosso primeiro beijo vai ser exatamente como o daquelas duas estátuas que vi no Centro. Longo” – não parava de imaginar. A rua estava praticamente deserta àquela hora da manhã. De vez em quando, o barulho de algum avião cruzando o céu, momento em que Divina levava a mão ao peito: “Valha-me Deus!”. Com aquela sua mania de andar sempre com os olhos fixos no chão, descobriu no asfalto o que considerou ser um sinal “divino”, um coração. “Sim, é um sinal! E dá pra ver que tem uma flecha transpassada. A flecha de Cupido! Como é mesmo a lenda?...”. Não se lembrava, mas os versos de Fernando Pessoa ainda estavam escritos em sua memória. Tinha-os na contracapa de um caderno, nos tempos do colegial, e decorava-os nas aulas de química: “‘Uma Princesa encantada / A quem só despertaria / Um Infante, que viria / De além do muro da estrada’... Eu sou a Princesa. Eu!” – e concluiu num meio sorriso, para que não a achassem tão louca. O tempo passava depressa e Divina não queria mais esperar. “Amar exige coragem” – sentia-se inspirada. Ainda do outro lado da rua, viu sair de dentro de casa um homem sem camisa. Calção de esportista. Divina não teve dúvidas, era ele. O mesmo cabelo de recruta. O olhar menos debochado, talvez com sono. O seu Floresberto. O coração dela disparou e, imediatamente, um sorriso franco lhe brotou dos lábios. “Que pensem que sou louca! Louca! Eu amo!” – vibrava. Aquilo é que era ser feliz? Divina então queria ser feliz para sempre. Floresberto pegou o jornal do chão e fez um movimento de retorno ao interior da casa. Divina tirou logo a carteira dele da sua bolsa e ensaiou a partida. Não houve tempo. Saiu de dentro de casa uma loira muito fresca, alva, bem feita de corpo. Beijaram-se ali mesmo. Pareciam apaixonados. Divina recuou confusa. Quando deu por si, a mulher já havia atravessado o portão e dobrado a esquina. Floresberto desaparecera também. Como num sonho. Ela ficara agora ali, parada, impassível, digerindo a sua tristeza. Conheceu o amor e a traição a um só tempo. Restava-lhe apenas a dignidade de avançar ultrajada em direção ao portão. Foi o que fez, depois de retirar todo o dinheiro que havia na carteira do infeliz e devolvê-la à sua porta. Em seguida, entrou num táxi. E aquele coração continuou lá, desbotado. No asfalto.

3 comentários:

Átila Goyaz disse...

Que lindo conto! Sem palavras aqui, coitada da moça... também foi se apaixonar por alguém que nem se quer conhecia... Lindo e triste, assim como algumas etapas da vida.
Abraços!

Alex M. disse...

Acho que todos nós já tivemos nosso dia de Divida! [Todos?, não sei. E, com certeza, vários]

Lindo, gostoso de ler, me prendeu.
Gosto muito desses personagens, que habitam anonimamente o labirinto das grandes cidades, carentes de tudo e de todos...

Alex M. disse...

Dinina, não Divida. sorry!