quarta-feira, 28 de abril de 2010

CLARICE E O LOBO DA ESTEPE



Um ano antes de sua morte, a escritora Clarice Lispector deixou escapar que estava “perplexa” com o tamanho de sua popularidade, afinal as pessoas nunca chegaram aos seus livros sem algum obstáculo e o grande assédio da imprensa e dos leitores, naquele momento, presumia que ela estivesse sendo “entendida”. “Será que estou na moda?” – lançou no ar a pergunta que, por mais banal que fosse, por vir dela, logo ganhou uma dimensão extraordinária. Se naqueles idos de 76 ela já era uma referência da nossa literatura, pode-se dizer que, hoje, ganhou também o status de “fenômeno”. O escritor Moacyr Scliar que esteve nos Estados Unidos, na semana passada, especialmente para palestrar sobre ela, resumiu muito bem esse crescente interesse: “Existe uma febre de Clarice”. É verdade, há na internet uma celebração incontida da sua obra, a sua nova biografia tem vendido como pão quente, a premiada peça “Simplesmente Eu, Clarice Lispector”, em cartaz em São Paulo, teve os ingressos das duas primeiras semanas esgotados com antecedência, a exposição "Clarice Lispector – A Hora da Estrela" é um sucesso por onde passa (tem nos arquivos do Blog de 2007), enfim, só faltam mesmo uma cinebiografia e uma minissérie na Globo. E todos querem, de alguma forma, desvendar os mistérios dela, como se isso fosse possível.


Acredito, particularmente, que parte do seu encanto reside na “personagem”, na mitificação, na “mulher-enigma”, naquele olhar ameaçador, na “bruxa” envolta pelo manto da solidão e repleta de pensamentos inquietantes. Por isso ao escrever a minha nova resenha, “Clarice, Ainda uma Pergunta”, para o site Aplauso Brasil/IG, fiz questão de enfatizar que, embora a biografia do norte-americano Benjamin Moser seja o trabalho mais completo de investigação sobre a vida dela, está longe de ser definitivo. A repercussão foi ótima e agradeço àqueles que já leram e se sentiram motivados a conhecer melhor o universo dessa grande escritora. Segue o link: http://colunistas.ig.com.br/aplausobrasil/2010/04/26/clarice-ainda-uma-pergunta/

Vou contar um pouquinho de como me tornei fã da Clarice. Fã porque tenho quase todos os livros, algumas edições raras e mais uma série de revistas, camiseta, quadro e até ímã de geladeira eu já tive. Ninguém nunca me indicou os livros dela, nem no colégio, eu simplesmente a descobri ou ela me escolheu, não sei. O fato é que ainda adolescente, acostumado a “roubar” os livros de Língua Portuguesa do meu irmão mais velho, cheguei ao belo conto “Uma Amizade Sincera”, que li de um só fôlego, numa noite insone e de favorável silêncio. Nunca esqueci a minha reação depois: “Como alguém pode entender tanto os meus sentimentos dessa forma?” – disse, com um certo embaraço. Com o passar do tempo, a nossa “relação” ganhou um tom mais grave, mas não menos apaixonada. Comecei a ler os seus livros mais densos, a estudá-los e a indicá-los insistentemente aos amigos. Sim, porque ela não ganha só na releitura, mas também no boca a boca. É o sucesso do seu efeito multiplicador. Os blogs, as comunidades do Orkut e o Twitter existem justamente pra isso.


Por conta da resenha, quis ler um livro que ela leu aos 13 anos e que a deixou em estado de “choque”. Também a influenciou bastante, embora nunca admitisse, o que entendo como parte da sua ficcionalização. Trata-se do complexo e perturbador “O Lobo da Estepe” (1927), do escritor Hermann Hesse, romance sobre o esquisito Harry Haller, um cinquentão recluso, intelectual, em permanente estado de angústia e imersão em si mesmo. Talvez, precisasse estar num momento menos “lobo da estepe”, para vê-lo com um certo distanciamento, mas, mesmo assim, o recomendo como obra-prima. E digo mais, à primeira lida, assim como foi pra Clarice, me espantou também. Cheguei a me reconhecer em trechos inteiros do livro, mas, claro, não substitui uma sessão de análise rs. Num dos raros momentos otimistas, o autor escreve: “E mesmo a mais infeliz das existências tem os seus momentos luminosos e suas pequenas flores de ventura a brotar entre a areia e as pedras”. Pensando assim, Clarice que teve uma vida repleta de sofrimento teria nos legado um vasto jardim de rosas ou girassóis. Estes últimos, aliás, admirados por ela por sua generosidade contida no movimento de “virar sua enorme corola para o lado de quem o criou”. E hoje somos nós quem nos curvamos a ela. Num gesto de profundo e sincero agradecimento.


Obrigado a todos pela excelente repercussão do post anterior, fiquei bastante feliz. O texto também já chegou ao site Culture-se. Mas já que o assunto de hoje é Clarice Lispector, deixo a vocês um pequeno desafio, pra mim imenso, o de reproduzir a frase da escritora de que mais gostam ou comentar sobre um livro dela que os marcaram. Pra mim essa é uma tarefa difícil, mas, por uma questão afetiva, fico com “Amizade é matéria de salvação” e quanto ao livro ainda não me decidi rs. E a ilustração que fiz vai de presente para uma pessoa muito querida e que faz aniversário esta semana rs. É isso. Abração!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

A VIDA COMO ESPETÁCULO


Quando soube do outing do cantor Ricky Martin, pela internet, sinceramente não imaginei que fossem fazer tanto barulho. Não se trata de ingenuidade, mas me perguntei exatamente como milhares de pessoas: Quem já não sabia?”. A imagem dele que está na ilustração que fiz, por exemplo, não deixa a menor dúvida. Mas, claro, fui ao blog e li o texto. Achei bonito, honesto, aliás, fiquei até feliz por ter sido dessa forma. Ponto para nós blogueiros. Digo mais, até brindei o fato com uma amiga, de pura sacanagem. E nem pensei em comentar nada aqui, juro. Esse é o tipo de coisa que considero extremamente particular, não importa se a pessoa é anônima ou celebridade. Mas, depois, começaram a pipocar comentários na mídia do tipo: “E o Ricky Martin, hein? Gay. Que desperdício!”. Parecia que o cara tinha deixado inúmeras viúvas inconsoláveis. E, de repente, aquele gesto superbacana virou motivo de piada. Soube até que, aproveitando a oportunidade, os humoristas do CQC espremeram o jornalista Zeca Camargo contra o armário. Fiquei me questionando. Onde está a graça nisso? Pra que essa espetacularização em torno da vida íntima das pessoas? Só por serem figuras públicas? Já não chegam os imprestáveis BBBs e coisas do gênero?

E como se não bastasse toda a especulação sobre o possível dono do coração do cantor, ainda surgiu, em horário nobre de uma TV brasileira, um carioca pra lá de oportunista, que tinha sido muito “amigo” dele, no passado, querendo tirar uma casquinha do fato. Muito tosco, para dizer o mínimo. A pergunta final da apresentadora foi tão previsível quanto a resposta do infeliz. Reproduzo aqui com alguma fidelidade. “E se você fosse convidado para posar nu numa revista gay, você toparia?”. O que vocês acham? Claro, o pobre-diabo respondeu que sim, sem sequer parar pra pensar. Cai o pano. Ah!, já ia me esquecendo. Não assisti também à reportagem do Fantástico, mas soube que nela o cantor baiano Netinho, entrevistado pela repórter Renata Ceribelli, confessou ter tido um relacionamento homossexual, mas, segundo ele, a sua participação no programa foi prejudicada pela edição. Também usou a internet, mas, no seu caso, para protestar. Tentei consolá-lo, via Twitter, com uma frase da escritora Lygia Fagundes Telles, bem apropriada para o momento: “Eu respeito o mistério de cada um, como espero que respeitem o meu”. Ele fez um muxoxo, disse que a frase era muito boa, mas que “isso precisa ser mudado”. Imagino que o Miguel Falabella deva estar se inspirando bastante para a sua “A Vida Alheia”, espécie de prima pobre de uma série norte-americana chamada “Dirt”, a que assisti uma única vez, mas que também não vi muita graça. Pelo menos na nossa versão, tirando pencas de clichês, tem aquele humor ácido e sem vergonha do Falabella, espero que emplaque.

Mas nada disso supera em ignorância, para ser bemmm romântico, uma entrevista que o secretário de Estado do Vaticano, o cardeal Tarcisio Bertone, concedeu a diversos jornalistas, na sua recente viagem ao Chile. Ele não só relacionou a pedofilia à homossexualidade como disse estar respaldado em estudos psicológicos e psiquiátricos. Seria interessante o Vaticano tornar públicos esses estudos, porque vi diversos profissionais da área, sérios, competentes, afirmando o que todos nós também já sabíamos: não existe nenhuma relação de uma coisa com a outra. Abro aqui um parêntese. Não quero causar nenhuma polêmica, apenas para efeito de reflexão. No dia do meu aniversário, minha mãe me presenteou com um livro chamado “Quem me roubou de mim?”, do midiático padre Fábio de Melo. Talvez, ela imaginasse que estivessem ali todas as soluções para os meus problemas, mas isso não vem ao caso. Ocorre que, logo no início, ele escreve exatamente assim, mais didático impossível: “A identidade nos diz sobre nós mesmos. / Ao identificar que sou Fábio, naturalmente estou dizendo que não sou Fernando. A identificação é também diferenciação, porque toda afirmação há sempre uma infinidade de negações latentes. / Essa identidade necessita ser cultivada”. Bem, tirem as suas próprias conclusões. Fecho o parêntese. Na semana que vem, aparecerei com novidades a respeito da escritora Clarice Lispector. Não percam! E tenho vários blogs para visitar. Abração a todos e um ótimo final de semana! P.S. Alguém tem aí algum CD do Ricky Martin pra me emprestar? rs.

sábado, 17 de abril de 2010

POR UM RIO MAIS FELIZ


Minha singela, mas honestíssima homenagem à cidade do Rio de Janeiro, que se recupera do caos causado por aqueles dias quase intermináveis de chuva. Acho que todo mundo acompanhou aflito pela TV, internet, jornais e agora pelas revistas (aliás, achei bem “suspeita” aquela capa da Veja, mas esse é outro assunto). Como tenho muitos amigos cariocas e adoro a cidade, embora nunca tenha estado lá, sim, sou medroso, mas não deixo de admirá-la de longe, de pintá-la, de ler sobre, principalmente as descrições deliciosas nas obras de Machado de Assis, achei que seria uma forma bacana de levar um pouco de alegria a eles. Não é à toa também que pinto muitos São Sebastião (já se tornou um tema fetiche rs) e deixo até um aqui para espantar uma possível “mágoa de caboclo” rs. Daí o Gilson, um amigo querido deste humilde espaço, me cobrou ter mais trabalhos meus aqui, então segue um feito na ordem do dia. Em breve, aparecerei com uma série linda e vai ser uma grande surpresa. Já estou no ateliê a todo vapor. Escolhi a Leila Diniz para estampar a alegria e o “desbunde” tão característicos dos cariocas. O filme homônimo sobre ela, do Luiz Carlos Lacerda, é ótimo também. Recomendo. A Louise Cardoso está excelente no papel da atriz. Bem, que a Igreja não me crucifique por tê-la no lugar do Cristo Redentor, que, assim como o Carlos Heitor Cony, não acho lá uma maravilha de design. Enfim, vamos ajudar o Rio a ser mais feliz, né? Abração e ótimo final de semana.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

MR. AMERICA




No último final de semana, estive em São Paulo para assistir à exposição Andy Warhol, Mr. America, na Estação Pinacoteca, em cartaz até 23/05. Fã confesso de Pop Art e do artista (quem acompanha meu trabalho em pintura sabe disso), a exposição não causou em mim impressão melhor que a de ter estado diante de uma grande “piada”. E não poderia ser diferente, as frases muito bem sacadas e humoradas de Warhol, estampadas praticamente em todos os lugares, chegam a ser muito mais interessantes e divertidas do que boa parte do seu trabalho exposto.

Vendida como o evento do ano das artes plásticas, a exposição pretende alcançar (e está conseguindo) o mesmo sucesso de mostras anteriores como a do pintor francês Henri Matisse e as dos brasileiros Vik Muniz e Beatriz Milhazes. Desnecessário dizer que a propaganda é a alma do negócio, daí o público estar comparecendo em peso, a ponto de ter sido montado até um esquema especial, na entrada do museu, para evitar possíveis confusões. Aos sábados, com a bilheteria free, o número de visitantes triplica. De crianças a velhinhos, todos querem ver os quadros multicoloridos do artista, ainda que não saibam absolutamente nada sobre ele. Melhor assim, os mais puritanos poderiam até voltar pra casa.

Longe de ser uma retrospectiva e soando mais como “é o que a América Latina tem pra hoje”, não podemos também fazer a “linha” os inconformados, boa parte do repertório iconográfico de Warhol está lá: as famosas séries “Marilyn Monroe”, “Sopas Campbell's” e “Jackie”, o polêmico “Mao”, “Pelé”, “Autorretratos”, a nostálgica série de polaroids e até trabalhos mais experimentais (os meus preferidos) como “Silver Clouds”, porque segundo o artista “prateado é a cor do narcisismo”, “Cow Wallpaper”, que lamentavelmente com a péssima iluminação da primeira sala ficou relegada a segundo plano e “Blow Job”, que recebeu o brasileiríssimo título de “Boquete” e que, em pleno século 21, não chega sequer a corar as pessoas, mas atrai bastante atenção pela semelhança física do “ator” do vídeo com James Dean.

A Pop Art é um produto direto da sociedade de consumo, é uma forma estética de retratar o universo das coisas, por isso até hoje muitos críticos ainda torcem o nariz: “Isto não é arte” – costumam dizer, ignorando até mesmo o seu enorme apelo popular. Harold Rosenberg, por exemplo, duvidou da sua legitimidade, por não encontrar nela conceitos mais “nobres” que a justificassem: “Não se sabe se se trata de uma obra-prima ou de uma porcaria”. Cabe então uma dica: não se espante, ao se deparar com uma frase de Warhol se defendendo de que “não critica a sociedade norte-americana”, como se imagina à primeira vista. Ou que ele fez um quadro sobre dinheiro, porque “é a coisa de que mais gosta”. É aí que entra o outro lado do “espetáculo”, não se pode separar arte e artista, quando se trata de Andy Warhol. Toda a tradição pictórica anterior ao seu surgimento era reduzida simplesmente à pintura, mas depois dele se tornou comum muitos artistas afirmarem, sem o menor pudor, cheios de vaidade: “Eu sou a arte”, como o semiólogo francês Roland Barthes observa muito bem, no catálogo “Pop art, evoluzione di una generazione”, de uma exposição em Veneza, em 1980.

Li num jornal que o teor da exposição é “uma faceta crítica” do artista, que existe ironia na escolha das imagens, na manipulação delas, no uso das cores, que por trás daquelas que são mais sedutoras existe uma América de cara limpa, pouco atraente, etc. Não contesto nada disso e ainda acrescento que existem trabalhos mais “sérios” dele, que merecem até uma atenção redobrada: a série “Suicídios”, “Cadeiras Elétricas” e “Os Homens Mais Procurados”, para ficarmos apenas nesses exemplos. O fato é que esses trabalhos visualmente até surpreendem e, dependendo de cada um, podem até chocar, mas os textos de Warhol que os acompanham, de tão debochados e irônicos, não nos oferecem outra possibilidade que não seja a de estarmos diante do simples reflexo das coisas representadas.

Momento bastidores. Tenho um prazer irresistível, quase infantil, de fotografar exposições, quando não se pode registrar nada. Quando é permitido, não vejo muita graça. Já pergunto esperando o “Não pode!”. Daí é aguardar um vacilo dos monitores para poder conseguir o meu “furo”. Já fiz isso várias vezes. Primeiro porque é sem flash e não danifico obra nenhuma, segundo porque é para divulgação da exposição, eles é que deveriam me agradecer. Andy Warhol, Mr. America foi a mais difícil de todas. Havia muitos monitores (muitos mesmo!), além de centenas de visitantes e por um descuido meu (me pegaram com a câmera na mão) me tornei um alvo fácil para eles. Um dos monitores nem disfarçava mais em me seguir, parecia um papagaio de pirata, de tão na minha cola. Mas também não iria deixar os leitores do meu Blog sem poder curtir um pouquinho da exposição. Fiz dois cliques, muito rapidamente, mas fiz. Bem, pra terminar o post, que já está imenso, queria só registrar aqui duas coisas: a minha solidariedade aos cariocas por conta das fortes chuvas que culminaram em tantas perdas e estragos, no Rio e em Niterói. Estou torcendo muito por vocês. Força aí! E também agradecer a companhia do meu querido amigo Paulo Henrique Moura (foto), do site Culture-se.com, do qual participo como colaborador, que bloga de vez em quando no “Tenho Opinião, Logo Existo” e que eu tive o grande prazer de conhecê-lo pessoalmente, no último sábado, na gélida capital paulista. É isso. Uma ótima semana a todos! Abração!!!

domingo, 4 de abril de 2010

UM DEDO DE PROSA


Com alguns transtornos emocionais eclodindo, pensei até em dar férias ao Blog, mas, quando me dei conta, já estava rabiscando um novo texto. “Festa de S. João” é sobre a derrocada de uma família, numa modesta fazenda do interior de Alagoas, numa época de crescente êxodo rural no Brasil. Uma mulher presa a um casamento inútil, uma filha solteirona com problemas mentais, um filho idealista e covarde e um chefe de família extremamente abrutalhado, estes são os personagens. Ficam no ar as perguntas: Será que vale a pena manter um relacionamento de aparências? Por que tantas vezes sabotamos os nossos próprios sonhos? Vocês já tomaram alguma decisão importante, pressionados por uma situação-limite? Quem quiser contribuir com a sessão "análise" rs é só respondê-las. Espero que todos tenham tido uma linda Páscoa! Abração!

Festa de S. João

“E não havia mesmo motivo de lhe dar amor”.

Tudo era tão diferente além daquelas grossas toras de madeira que cercavam a fazenda S. Francisco, no interior de Alagoas. Em 1972, Ana Laura ainda tentou mudar-se de lá com a sua família, época em que saltavam aos olhos os benefícios da “modernidade”, mas esbarrou na teimosia incansável do marido, o severo Olinto Ferreira, que, por alguma razão, preferiu viver de forma primitiva a se render à facilidade da luz elétrica, à mercearia por perto, ao posto de saúde, etc. E foi sob tensão e medo que Ana Laura criou os seus dois filhos, a frágil Carolina e o inquieto João Pedro, este o único que conseguiu driblar as rabugices do pai, para estudar na Cidade.
Não se passava um só dia sem que houvesse um princípio de briga ou uma briga inteira, naquela casa. Tudo era motivo para Olinto revoltar-se contra Deus e contra todos. Se falassem no casamento de Carolina, que já estava passando da idade, a resposta era sempre a mesma: “Minha filha não é feijão bichado para se andar oferecendo por aí. E depois quem vai querer uma menina que vive amofinada no quarto, recebendo comida pela porta feito um animal?”. Quando João Pedro tentava seduzi-los com as grandezas da Cidade, ele logo o interrompia: “Cidade só serve pra divertir os olhos e esvaziar os bolsos. Mas quem quiser tomar seu rumo e sair cavando o mundo por aí, não precisa de minha benção”.
Havia entre Olinto e João Pedro uma convivência muda, uma intimidade ignota. Não é que se odiassem também. Não, não chegavam a tanto. Mas também não se podia dizer que um morria de amores pelo outro. Pai e filho, dois estrangeiros dentro da própria casa. Só restava mesmo a Ana Laura voltar-se para a sua tristeza e bordados, que afinal eram tudo a mesma coisa. Quem a via bordando nas horas vagas não imaginava que ali, naqueles simples pedaços de tecido, estavam em relevo todas as suas angústias e frustrações, por isso ela sempre manifestava a vontade de, a qualquer momento, encontrar o ponto inicial do artesanato para poder desfazer tudo.
A novidade da festa de S. João, no entanto, chegou trazendo uma pequena esperança, na casa dos Ferreira. Era tradição, naquela época do ano, na Cidade, as ruas serem enfeitadas com bandeirolas e na frente de cada casa serem montadas grandes fogueiras. Havia também, na praça, quadrilhas e barraquinhas com música e comidas típicas. As crianças estouravam bombinhas e os adultos foguetes. O céu se enchia de luz. João Pedro chegou eufórico portando a boa nova: “Minha mãe, não se fala em outra coisa na Cidade. O São João deste ano vai ser o melhor. Vai ter até músicos da capital!”. Carolina, que quase não esboçava reações de contentamento, dessa vez não parava de sorrir. “Sim, minha irmã, música e dança. Vai ser bem divertido. Nós vamos!” – continuou animado. Ana Laura lamentava ter que “colocar água na fervura”, mas tinha lá os seus motivos para ser cautelosa: “Tudo vai depender do pai de vocês. Vocês sabem que ele detesta a Cidade. Festa então...”. João Pedro não se conteve: “O papai deve ter o umbigo enterrado aqui, não é possível! Todo mundo está se mudando pra lá, só a gente que ainda mora neste fim de mundo”.
O leitor já deve imaginar que, ao saber dos planos para a festa de S. João, Olinto, que tinha um gênio irascível, não aprovou a ideia. João Pedro até se atreveu a defender a mãe, mas foi empurrado fortemente contra a parede. A débil Carolina, ao ouvir todo aquele barulho, se assustou e fugiu desesperada pela janela. Era uma noite densa e por isso, lá fora, ficou ainda mais exposta aos perigos. Foi encontrada, na manhã do dia seguinte, na mata fechada, com o corpo todo crivado de picadas de abelhas. Ao vê-la ali, imóvel, transfigurada, Ana Laura entrou em estado de choque. Só havia um responsável por aquela tragédia: o cruel Olinto. Cheia de coragem, ela o enfrentou: “Você matou a nossa filha, seu miserável!” – desabafou exasperada. Pensou em esbofeteá-lo. É sempre humilhante para um homem receber uma bofetada, mas preferiu apenas concluir que estava indo embora. Olinto não disse uma única palavra, mas possuído por uma força impura, começou a destruir tudo que encontrava pela frente.
É bem verdade que a amarga perda de Carolina impulsionou a tão sonhada partida de Ana Laura e João Pedro, para a Cidade ou qualquer outro lugar, mas também deixou marcas definitivas em Olinto. Comentava-se que a menina teria transferido a ele a sua loucura, o infeliz passou a delirar constantemente e a se comportar como um “bicho”, mas permaneceria na fazenda “até a destruição do mundo”. Já Ana Laura experimentaria, pela primeira vez, o desejo de libertar-se daquelas fundas raízes, na terra árida: “Nunca mais piso os meus pés aqui”. E, ao longe, o barulho dos foguetes já anunciava as comemorações da festa de S. João.