quinta-feira, 23 de abril de 2009

UM MILAGRE PARA A ESTRELA AZUL


O texto, a seguir, faz parte de uma trilogia de histórias que escrevi sobre amizade. Já postei aqui "A Ponte e o Abraço". Agora é a vez de "Um Milagre Para a Estrela Azul", aproveito também para homenagear o Shiro, o cão da minha família, que acaba de se recuperar de uma doença bem séria. E, claro, a escritora Lygia Fagundes Telles, que fez aniversário no último dia 19. O texto é longo, por isso quem não curte literatura não se sinta obrigado a prosseguir, mas a mensagem vale muito a pena. É isso.

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"As estrelas eram um símbolo de pureza, qualquer coisa inatingível que a mão dos homens não havia ainda conseguido poluir. As criaturas que chafurdavam na lama podiam salvar-se se ainda tivessem olhos para ver as estrelas". Érico Verissimo

Saguão de hospital. Tudo muito claro e frio. Ali perto, Heitor está entre a vida e a morte. Paula está sentada olhando um horizonte imaginário, quando Cauê se aproxima.

Cauê (tocando no ombro da amiga)
...Paula? E aí, como é que ele tá?

Paula
...Muito mal. Não sei se o Heitor vai conseguir sair dessa.

Cauê (otimista)
...Temos que ter fé. Agora, é ter fé, minha querida. Ter fé.

Paula
...Ele tinha tanta fé, Cauê. Era sempre o primeiro a invocar o nome de Deus.

Cauê (sentando-se)
...Ele vai ficar bem. Caramba, não é justo!

Paula
...Fizemos tantos planos. Lembra?

Cauê
...Lembro.

Paula
...Uma das últimas coisas que ele me disse foi que queria viajar. Correr o mundo com uma mochila nas costas. Começaria pela Patagônia, vê se pode.

Cauê
...Isso era bem a cara dele. Essas aventuras turísticas sem um tostão no bolso. Nunca esqueço aquela viagem que fizemos a Paraty...

Paula
...Nós tínhamos combinado de fazer um curso de teatro juntos. Fomos até a escola ver como funcionava o lance da matrícula. Eu falei pra ele que ele já era um ator e dos bons. Ele riu como se fosse uma criança.


Cauê
...Adorava passar trotes pelo telefone, lembra? Eu mesmo caí em, pelo menos, uns cinco.

Paula
...Eu não me conformo. Não me conformo, Cauê! Olha, se o Heitor... Se ele morrer, aí é que eu vou pirar de vez mesmo.

Cauê
...Pelo amor de Deus, não vamos pensar no pior. Você já falou com a família dele?

Paula
...Só com uma das irmãs. A mãe dele me detesta.

Cauê
...Eu avisei ao João. Ele ficou tão chocado, mas daquele jeito dele, sabe?

Paula
...Espero que ele consiga passar por cima daquele orgulho besta e faça, pelo menos, uma oração para Heitor.

Cauê
...Há quanto tempo eles não se falam?

Paula
...Acho que há uns seis meses, sei lá.

Cauê
...Pra quem andava sempre grudado...

Paula
...Eu não sei direito o que houve. Aliás, eu não sei o que houve com todos nós. Quando nos conhecemos, era tudo tão bom, fazíamos tudo juntos... De uns tempos pra cá, cada um foi ficando na sua...

Cauê
...Tantas cobranças, ciúmes, isolamentos. Para algumas pessoas, a amizade virou até uma espécie de obrigação.


Paula
...Se nós pudéssemos começar tudo de novo...

Cauê
...Você acha que seria diferente?

Paula
...O João e o Heitor, por exemplo. Eles não se largavam, lembra?

Cauê
...Eu tenho quase certeza de que o rompimento deles foi por puro excesso de intimidade.

Paula
...Amigo que é amigo suporta essas coisinhas bobas, Cauê.

Cauê
...Mas um momento de silêncio também é bom. É até necessário.

Paula
...Eu já tenho medo do silêncio. Tenho medo de mim mesma, no silêncio.

Cauê
...Eu nunca me senti, assim, Paula.

Paula
...Assim como?

Cauê
...Assim, com essa sensação de vazio, de ter um buraco aqui dentro, sabe? Eu acho que eu também era dependente do amor dele.

Paula
...Todos nós éramos.

Cauê
...Um amor que beirava até o infantil, né?

Paula
...Ele sempre teve mesmo uma certa pureza.


Cauê
...Pra você deve ter sido difícil se apaixonar por ele daquela forma, não é?

Paula
...Sabe que não? Quando eu descobri que estava apaixonada por ele, eu era muito novinha, imatura. Nem sabia direito o que estava sentindo. Foi mais um impulso, eu acho. Ele também nunca me disse verbalmente que não queria nada comigo. Talvez não quisesse me machucar também. Mas eu logo entendi e segui o meu caminho. Também nunca o vi machucando ninguém, mesmo que a pessoa merecesse.

Cauê

...É verdade.

Paula
...Ele sempre queria o melhor para nós. Quando não podia fazer isso, simplesmente desaparecia. Era como um código. A gente logo sabia que ele estava exilado em algum lugar.

Cauê
...E ninguém conseguia tirá-lo de lá.

Paula
...E quanto mais perguntas, mais silêncio.

Cauê
...Ah, mas com o João ele sempre se abria. O João, por exemplo, foi o primeiro a saber que ele tinha comprado aquela maldita moto.

Paula
...Pois é... E, depois, deu no que deu.

João se aproxima.

João
...Oi pessoal.

Cauê
...Você não morre mais. Estávamos falando justamente de como você e o Heitor eram amigos.

João (sentando-se)
...E como é que ele tá?

Cauê
...Mal, né? Muito mal.

João
...Se eu soubesse...

Paula (num rompante)
...Se nós soubéssemos, tudo seria diferente. Teríamos feito uma festa pra ele.

João
... Na verdade, eu poderia mesmo ter passado por cima do meu orgulho, ter dito a ele: “Cara, vamos começar tudo de novo. Vamos esquecer essas besteiras”.

Cauê
...Agora é um pouco tarde para arrependimentos, você não acha?

João
...Ele não quis entender a minha imperfeição também. Eu errei. Todos erram, não é? Olha, vocês podem achar estranho eu dizer isso só agora, mas eu ainda o amo. Amo.

Paula
...Agora que ele não pode ouvir?

João
...O que vocês querem que eu faça? Eu já admiti que errei.

Cauê
...Mas não basta.

Paula
...Por favor, estamos num hospital.

João
...Dane-se o hospital! Não fui eu que provoquei o acidente.

Cauê
...Mas depois que vocês romperam ele nunca mais foi o mesmo.

João
...Eu faço qualquer coisa por ele... Ele não está precisando de sangue? O que ele está precisando?

Paula
...Não seja ridículo, João!

João
...Eu tentei me reaproximar dele. Enviei um e-mail, mas ele não me respondeu.

Cauê
...Ele me falou desse e-mail.

João
...O que ele te disse? Fala, Cauê!!!

Cauê
...Disse que você precisaria de muito mais alegria para saber que a vida dói.


João
...Não entendi.


Cauê
...É simples...

Paula (interrompendo-o)
...O João quis dizer que você só reconheceria o valor da amizade dele, depois que quebrasse a cara. Pronto, falei.

João
...Vocês acham que se ele ficar bom pode ainda me perdoar?

Cauê
...Não sabemos nem se ele vai ficar bom.

Paula
...Eu tenho por dever acreditar em milagres.

João
...Foi tão grave assim?

Cauê
...A moto entrou debaixo de um caminhão.

João
...Merda!

Paula
...Agora só resta mesmo rezar.

Cauê
...Preciso ir em casa tomar banho e comer alguma coisa. Estou na rua desde cedo. Vocês vão ficar?

Paula
...Eu tenho ainda que passar, na faculdade dele. Não sei se eles já sabem. Quanto mais pessoas torcendo pela recuperação dele, melhor.

Cauê
...Eu te dou uma carona.

João
...Peraí, gente, vocês vão me deixar aqui sozinho?

Paula
...Vamos, Cauê?

João
...Espera aí...

Paula e Cauê deixam o hospital. João leva as duas mãos ao rosto, num gesto de impaciência. Quem sabe ainda chore.

domingo, 19 de abril de 2009

MÃOS DADAS

Alguém quer ser meu amigo?

Quando comecei este blog, fui bem claro ao afirmar que não queria que ele me escravizasse e que, embora gostasse muito de escrever, não me sentiria obrigado a fazê-lo sempre. Mas a brincadeira de “tirar” a roupa, no último post, para subir a audiência dele, foi interpretada muito ao pé da letra por algumas pessoas. Cadê o espírito esportivo dessas pessoas?

E comigo não tem essa de hiato criativo, não. Já comecei a preparar a primeira mostra dos meus quadros. Divulgo a data e o local posteriormente, mas já reservem espaço na agenda para julho. Conto com vocês.

E, enquanto a minha exposição não fica pronta, vou visitando a dos concorrentes. Uma que vi e achei bem “bonitinha” foi “Diálogos com Drummond”, na Pinacoteca Benedito Calixto, em Santos. Vivo reclamando que na Baixada não tem atrações culturais interessantes, mas dessa vez me surpreendi. Apesar de pequena e de alguns trabalhos de qualidade duvidosa, a maioria me agradou. Fãs de Drummond como eu reconheciam facilmente a ligação entre as obras visuais e os poemas que as inspiraram. A de que mais gostei foi uma escultura em resina chamada “Companheiros”, de Vivian Marin, inspirada no poema “Mãos Dadas”. Adoro a força da simplicidade desse poema, desde que o li pela primeira vez na faculdade. “O presente é tão grande, não nos afastemos. / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”. Lindo! Lindo! Lindo!

Assisti também à peça “Avenida Dropsie”, da Sutil Companhia de Teatro, no Teatro do Sesi, em São Paulo. Baseada na obra do escritor de quadrinhos Will Eisner, “Avenida Dropsie” tem um excelente texto, bem enxuto e dinâmico, interpretações preciosas (cada uma melhor que a outra), o cenário mais lindo que já vi da Daniela Thomas e uma trilha sonora urbana e vibrante. Enfim, um casamento perfeito entre linguagem cênica e cinematográfica. Aliás, um caminho que deveria ser seguido pelos nossos dramaturgos. Agora a notícia triste. Infelizmente, já saiu de cartaz.

Termino, então, com um poeminha sacana que fiz especialmente para um leitor e provocador deste blog.

Canibalismo pra sobrevivência

A F.V.A.

É preciso ser diferente
Não anormal propriamente,
Mas canibal pra sobrevivência.

Engula o Tropicalismo
Lembre-se de que a sua pátria é o seu povo
Mastigue os neologismos de Guimarães Rosa
Se não entendeu, lhe explico de novo.

Coma a Psicanálise, devote Freud
Leia Proust
Banqueteie os franceses
É cult.

Saboreie livros
Cultue o Modernismo,
Mas não seja um vegetariano de cadernos culturais.
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E a vida segue poética. Abraços, beijos...