domingo, 3 de agosto de 2008

SE EU MORRESSE AMANHÃ


Não sei exatamente quando, talvez no auge da minha adolescência, que escrevi um poema cujos versos eram: “Se eu morresse amanhã, sofreria por meus pais. / Alegrias nunca mais, se eu morresse amanhã”. Agora me lembro bem. Era um trabalho de Língua Portuguesa, do segundo colegial. Deveríamos fazer uma intertextualidade com o poema homônimo de Álvares Azevedo. Naquele mesmo ano (1997), a minha família perdeu uma tia muito querida, a tia Mel, ceifada por um câncer de pele que a fez sofrer por mais de dez anos, uma luta inglória que eu jamais esquecerei. Tempos depois escreveria: “Vi a morte de perto / Vi a morte de bruços / Vi a morte arrancar pedaços / Vi a morte desatando laços / Vi a morte me abrindo os braços e eu não fui cumprimentá-la”. Era a minha primeira experiência com a morte, assim de perto. Ainda nem conhecia os poemas do Manuel Bandeira. Como tenho uma família muito grande e unida, da parte do meu pai, essa morte nos chocou profundamente. Só quem tem um doente com câncer na família sabe, realmente, do que estou falando. Buscamos respostas o tempo inteiro para aquele sofrimento. Tudo em vão. Fizemos o possível pela nossa querida tia até o momento em que os médicos jogaram a toalha. Não havia mais nada a fazer. Não esqueço de logo acordar e ouvir a minha mãe aos prantos. Essas cenas nunca saem da nossa cabeça, podem correr gerações. Nesta madrugada, a dor foi muito pior, perdemos a minha querida vó Izaura, mãe da minha mãe, por quem chamávamos carinhosamente de vó Zarinha, a pessoa com os olhos mais doces que já vi em toda a minha vida, de quem herdei também a minha famigerada teimosia. Beirando os 90 anos, ela não resistiu às intempéries desse músculo tão misterioso que é o coração. A dor da minha mãe foi ainda maior. O que dizer? Como consolar numa horas dessas? A minha casa viveu momentos de grande desespero. Até o dia lá fora parecia contribuir para aquela tristeza, uma garoa fina insistia em cair, o céu de um cinza londrino. Em janeiro fui à Bahia e a encontrei frágil, oscilando entre momentos de espantosa lucidez e delírios quixotescos. Ainda assim, me dava um prazer imenso ouvi-la contar casos do seu “pai”. A cada duas frases, uma era: “O meu pai é governo forte”, expressão baiana que designa alguém de muitas posses. Teria eu herdado também essa loucura? Quem o sabe. Dentro da sua simplicidade gratuita, dessas que só encontramos no interior do Brasil, avessa a presentes que não fossem presença e carinho, ela gostou apenas de uma camiseta verde que eu usava. Ressaltou que, se eu quisesse presenteá-la, que fosse apenas com aquela camiseta, a qual usaria quando fosse encontrar o seu “pai”. Lavei eu mesmo a camiseta e, no dia seguinte, a entreguei com todo o meu amor. Vi então o seu sorriso franco e aquele brilho no seu olhar. O último. Tudo como num desses momentos mágicos da vida, o qual a gente nunca esquece.

1 comentários:

Anônimo disse...

Os olhos são doces mesmo! Que delícia... adorei o post. André