domingo, 26 de agosto de 2007

INILUDÍVEL SOLIDÃO

Não é que fossemos amigos. Não. Nem chegamos perto de tanta felicidade. Era um desses colegas de classe que gostam de arrancar risadas a qualquer momento. Se trocamos duas ou três palavras durante todo o colegial foi muito. Há pessoas que são assim, não precisam participar diretamente de nossas vidas ou fazer grandes coisas para se tornarem inesquecíveis. São pessoas que já nasceram predestinadas a estar no mundo. Consigo me lembrar de algumas delas que, num determinado momento de minha vida, nos cruzamos e tivemos muito pouco ou nada a dizer. Recordo-me agora de um rapaz que me viu num ônibus a caminho da faculdade, há um bom tempo. Dias ou meses depois, ele me disse à queima roupa num restaurante: “Você ainda vai estar na televisão”. Nunca mais nos vimos. Também não vi o surfista que ao sair do mar debaixo de um temporal me dirigiu palavras incompreensíveis, mas que nunca consegui esquecer. E a moça educada que me apresentou o computador, pela primeira vez, em 1997, na exposição de Monet, no Masp? Tantos outros fragmentos de presenças ou presenças inteiras que não somem da minha memória. Logo que o vi na feira-livre, na barraca de pastéis, foi como se todo um período gostoso da minha vida estivesse de volta. A Jacirene com o seu jeito tão espontâneo e feliz. O Wender tão dispersivo dormindo na carteira ao lado. O Vitor com o seu olhar de cão desamparado. A Fernanda consultando a sua tabela de combinação de roupas. A Graciete representando num vestido azul-piscina Aurélia (“Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela”). O César tão habilidoso com os artesanatos da festa do folclore. A sensibilidade da Lucélia contrastando com os seus ombros largos. A Fabiana sempre nervosa, mas indulgente, às voltas com os problemas de sua casa. O Santiago e o seu cavaquinho. O Gilmar com as suas inseparáveis revistas de nu feminino. A Rafaela com o seu ar naturalmente esnobe e, por fim, o Alessandro que eu revejo agora, dez anos depois. O mesmo porte atlético, as mesmas pernas fortes de jogador de futebol, os cabelos loiros, o mesmo rosto com um irrefletido ar de cansaço. O capacete na mão denuncia que ele continua gostando de velocidade. O que teria feito de sua vida até aqui? Casado? Com filhos? Quem sabe. Ensaiei me aproximar. Hesito. A minha timidez ainda vai me levar à ruína. Espero ele terminar o seu lanche. Fico afastado registrando aqueles últimos momentos de silêncio. Penso em me fazer notar. Talvez valesse a pena. Poderíamos conversar um pouco, falar de ociosidades ou sobre qualquer coisa que estivesse nos jornais. Não haveríamos de fugir àqueles tempos tão cheios de vida e sorrisos francos. Lembraríamos da peça “Filhos da Rua”, a nossa epopéia dramatúrgica no Marcílio Dias. Tão real quando ele apanhou a Graciete em seus braços, violentamente, simulando um policial mau caráter prestes a violentar a menina de rua. A comoção em cena aberta. A classe vestida de negro, no último ato, trazendo nas mãos os candelabros de garrafas pet com velas acesas e cantando à capela a música que dava título ao espetáculo. Era a primeira vez que um texto meu era encenado com apuro, ainda que fôssemos todos muito amadores. É tão diferente ser amador. Tão bom não se prender a regras e convencionalismos. Não escrever à moda de. Ao mesmo tempo a vontade de começar, de dar a cara à tapa, só para ver a reação do público. E, depois de deixar a barraca de pastéis, o segui. Não foi muito longe. Ele atravessou a avenida e foi ter com um vendedor de motos usadas, já na Feira do Rolo, na outra extremidade. Havia pouco movimento àquela hora da manhã. Pude ainda perceber o seu interesse nas motos pela forma como se detinha nelas. Examinava com um olhar apurado aquelas máquinas tão generosas e violentas. Num raro impulso, cheguei mais perto. Ele de costas. De vez em quando, fazia um meneio de cabeça. Voltava o corpo na outra direção. O sol muito forte. Não havia mais o que fazer. Deixei que nos perdêssemos novamente e voltei pelo caminho da minha iniludível solidão.

TOMANDO O PULSO


Pouco o que falar no vazio de esperança que se resumiram aqueles dias.
Apenas o protesto (o último) com letras firmes, cheias de ressentimentos.
E o bater atrasado do próprio coração para se lembrar de que ainda vive.

COMO NÃO ESCREVER POEMAS

SEGUNDA-FEIRA. Acordei com vontade de escrever um poema. Quem sabe um lindo poema de amor com direito a todas aquelas coisas ridículas a que os apaixonados se permitem confessar. Faltou o principal: o ser apaixonado.
TERÇA-FEIRA. A obsessiva vontade de escrever um poema começa a me tirar o sono. Passei a madrugada inteira na tentativa e erro. Deu erro de goleada. A folha de papel permaneceu em branco, mas fiz questão de picá-la em mil pedaços.
QUARTA-FEIRA. Chego à conclusão de que escrever poemas não deve ser mais difícil que ir à Lua. Mas também isso não acrescentou uma única palavra numa outra folha em branco que deixei sobre a mesa. Começo a pensar que o problema talvez esteja na cor da folha.
QUINTA-FEIRA. Estou quase desconsiderando a conclusão do dia anterior (somente no que se refere à dificuldade em escrever poemas). Desconfio que poetas são seres divinais. Tornou-se rotina triturar folhas de papéis. Até o envelope cor de
laranja foi guilhotinado.
SEXTA-FEIRA. O dia mais irresponsável da semana me afasta momentaneamente da possibilidade de escrever meu único poema. Tomei algumas batidas de frutas para desinibir meus pensamentos. Vomitei todo o meu quarto.
SÁBADO. Dor de cabeça. Recuso o futebol e não me acostumo à idéia de que escrever poemas está me deixando quase louco. Mas ainda não é hora de jogar a toalha. Um sábado à noite pode ser inspirador.
DOMINGO. Nada como um dia para não fazer nada. E não fazer nada inclui sobretudo não pensar em escrever malditos poemas, romances, roteiros, resenhas, ensaios, crônicas, cartas, e-mails, bilhetes...

HISTÓRIAS DE QUINTAL

Eu tinha três pares de anos, não mais do que isso. Lembro-me com precisão. Era a primeira vez que recebíamos uma visita mais longa em nossa casa. “Uma tia distante de São Paulo” – nos informou nossa mãe. Falou com aquele jeito prático que só ela tem. Fomos então brincar no quintal, com a sensação de que ali havia dente de coelho. Falavam baixo como se escondessem uma calamidade. Não houve tempo para grandes investigações. A tia distante de São Paulo, que eu notaria anos depois ser muito parecida com a poetisa Cora Coralina, já havia chegado. Depois das apresentações formais, ficamos à espera de algum presente. Ela não trazia nenhum brinquedo, nenhum chocolate, nada daquelas coisas que as crianças tanto gostam e sonham ganhar. Apenas a sua presença miúda, a sua voz cansada, quase gemida, que às vezes pareço ouvir no escuro. Um dos quartos sem janela lhe foi reservado. Ordens foram dadas para não entrarmos mais lá. Não queria perder o momento tão esperado de abertura da mala. Fiquei à porta observando curioso para saber o que sairia de lá. Havia ainda uma esperança. A última. Quem sabe nossa mãe pudesse ganhar um par de brincos. Ou um corte de tecido. Ou sapatos novos. Ela sentou-se na cama, o olhar secreto, as mãos vacilantes ao libertar da mala as botas negras de cano alto, as roupas de festa, as pequenas jóias e o que mais me chamou atenção, uma linda boneca. A tia distante de São Paulo já era velhinha e na minha imaginação perturbadora era inadmissível que ela ainda brincasse de bonecas. Uma boneca limpinha, ornada com o seu vestido branco de rendas e no seu rosto redondo uns olhos muito azuis. Fez um carinho na boneca e a deixou de lado. Nossa mãe me confidenciou recentemente que a tia distante de São Paulo tinha “problemas de cabeça”. Naquele tempo, não se ousava dizer certas palavras, principalmente doenças. O simples fato de pronunciá-las era motivo de muita temeridade ou para os mais supersticiosos, de muita desgraça. Tempos de muito silêncio. Soube também que ela foi abandonada em nossa casa, porque não dera certo na vida. Quanta maldade privá-la de estar onde ela realmente se sentia bem, na cidade grande. Éramos uma família remediada que gozava de boa paz financeira, mas nem todo conforto do mundo poderia proporcionar a ela a tranqüilidade de espírito de que precisava. Nunca presenciamos um ataque de fúria da sua parte. Na verdade, ela nunca demonstrou ausência completa ou parcial de sua lucidez. Aparentemente era uma pessoa normal. Apenas contava algumas histórias mirabolantes, o que não vejo nada de errado. Gostava também de pintar as maçãs do rosto com um acentuado carmim. A boca sempre muito vermelha. Cabelos curtos penteados para trás, sobressaindo os brincos de pressão. Uma figura pictórica saída de um quadro de Toulousse Lautrec. O tempo passou e a tia distante de São Paulo ganhou um novo destino, a casa de um de seus irmãos, num sítio muito humilde e distante da cidade. Os dias que antecederam a sua partida foram os mais lúgubres que já presenciei. O clima em nossa casa tornou-se pesado e não houve uma só pessoa que não aspirasse aquela tristeza. Como se sentisse a violência que se aproximava, ela foi ficando cada vez pior. Sem dúvida, começava ali o seu calvário. Inventaram mil histórias para convencê-la a entrar no carro. Eu estava na rua vendo tudo. Era uma manhã de sol calmo. Impassível na minha ingenuidade de criança, mas, por dentro, muito indignado. A tia distante de São Paulo não quis entrar no automóvel, resistiu com certa moderação, mas resistiu. As malas já estavam lá dentro. Teriam colocado a boneca de olhos azuis? Nunca soube. Não houve um erguer de voz. Gestos expansivos. Nada. Muito silenciosamente ela se deixou conduzir até o seu lugar no interior do carro. Não sem antes chamar pelo meu nome. Uma súplica. Cravando ainda em mim aqueles seus olhos misteriosos. Nunca os esqueci. E partiu. A tia distante de São Paulo só voltaria a nossa casa, poucos meses depois. Quando, enfim, morreu.

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

SERÁ QUE CONSEGUIMOS?


"É preciso amá-la (a Pátria) gloriosa ou obscura, próspera ou desgraçada".
Lygia Fagundes Telles – "As Meninas (1975)".

SÁBADO DIFERENTE

Sábado de sol. Dia muito agradável para uma caminhada na Av. Paulista. Sinto-me estranhamente feliz. No vão do MASP, muitos policiais reunidos. Talvez centenas. Desde a invasão do Carandiru, nada parecido. Faço várias conjecturas. Chego a pensar num ataque terrorista, como já havia sonhado na noite anterior, mas sigo em frente. Do outro lado da avenida, vejo uma pequena concentração de jovens, vestidos de preto e com caras pintadas (de novo?), se preparando para uma manifestação contra o atual governo petista. Não imaginava que aquela meia dúzia de gatos pingados fosse se multiplicar tão rápido. Um trio elétrico servia de palco aos organizadores do "evento", que, segundo os próprios, não tinham ligação com nenhum partido ou ONG. Tudo muito improvisado, mas, no meu entender, completamente legítimo. Viva a democracia. Começo a me entusiasmar com as frases de efeito, a criatividade dos cartazes, as fantasias de alguns deles, como a de um simpático velhinho vestido de anjo. Não resisti e fiz várias fotos (as melhores que já fiz até hoje). Ganhei até um nariz de palhaço para também ficar a caráter. O ponto alto foi o desabafo comovido de alguns parentes de vítimas do acidente com o avião da TAM. Tinha de tudo, menos o povo. Não consigo imaginar que os problemas do país afetam apenas a classe média. Será que os pobres não pagam impostos abusivos? Não são mal atendidos nos postos de saúde? Por acaso, a educação neste país é um orgulho nacional?... Já passou da hora das pessoas acordarem. Mas prefiro imaginar que nunca é tarde. No final da passeata, uma ponta de tristeza. Um tom drummondiano. Melancólico. Os versos de "Consolo Na Praia" pulsando dentro de mim: "Murmuraste um protesto tímido. / Mas virão outros".

PROTESTO TÍMIDO

BLOQUEIO

Clara era uma jovem escritora com muitas pretensões. Estava se firmando no escorregadio mercado editorial brasileiro. Conseguiu publicar o seu primeiro romance e de quebra ainda leu duas ou três resenhas sobre o mesmo, em jornais importantes, de grande circulação. A editora entusiasmou-se. Clara ficou orgulhosa de si mesma, apesar de pouco remunerada. Olhou para as contas sobre a mesa. Procurou inventar consolos que a deixassem mais tranqüila ou alimentasse a sua vaidade: "Eu não sou a J. K. Rowling. Nunca pretendi ser". Dias depois, um pouco alarmada, recebeu a notícia de que estava com um bloqueio.
– Bloqueio?
– Exatamente. É normal. Todo escritor já passou por isso. Sabe aquela luta contra uma folha em branco?
– O senhor escolhe tão bem as palavras, mas a minha luta é comigo mesma. Eu sei. Eu estou obstinada para escrever um grande romance, mas sequer consigo ter uma idéia de que me orgulhe. Nem umazinha. Nada. Eu sou a própria folha em branco, isso sim.
– Você deve estar exausta de extrair de si mesma sempre novas histórias. Tire umas férias. Conheça novas pessoas. Novas emoções vão ser úteis para o seu próximo trabalho. Você é tão jovem...
– E tão imatura, tão sem assunto, tão sem graça. Uma fraude! Não é isso que o senhor ia me dizer? Passar bem.
Clara pensou em chorar, mas achou-se ridícula chorando ali na rua, por causa de um bloqueio criativo. Talvez fosse melhor se desabafar com alguma amiga. Mas que amigos? Os poucos que cambaleavam no seu círculo de amizades não suportavam literatura. Ainda assim tentou a sorte. Quem sabe Catarina, a única que conseguiu concluir o ensino médio, pudesse lançar um ponto de luz naquela sua escuridão sem fim. Terminou ouvindo um conselho nada animador.
– Por que você não deixa para sofrer, no domingo à noite, quando já é inevitável. Eu empurro todos os meus problemas pro domingo à noite. Peço uma pizza. Como feito uma louca, sem culpa, enquanto escuto aquela musiquinha insuportável do Fantástico. Depois tomo os meus comprimidinhos para dormir e só acordo, na terça-feira. Sim, porque segunda-feira me deprime mais ainda...
Saiu decepcionada. Fora incapaz de construir amizades produtivas. Há tempos também não amava. Não conseguia amar a própria mãe. Estava oca em todos os sentidos. Quando conhecia alguém interessante, imediatamente não o imaginava tornando possíveis suas segundas intenções. Até o suicídio fora adiado centenas de vezes. Ao tentar atravessar a rua, completamente presa a suas angústias, Clara sentiu quando alguém lhe puxou o braço. Mal teve tempo de ouvir o motorista vociferando qualquer coisa de dentro do carro e partir.
– O sinal estava fechado.
– Sinal? Que sinal?
– Aquele dali. Agora já abriu. Você está bem?
– Só um pouco assustada. Foi tudo tão rápido.
– Acidentes acontecem num piscar de olhos. Assim diz o meu pai.
– Eu ando tão dispersiva ultimamente. E logo nesta cidade onde as pessoas parecem programadas a fazer só o que é certo. Erros são intoleráveis em São Paulo.
Por alguma razão o rapaz, sim era um jovem de vinte e poucos anos, não conseguiu deixá-la ali, sozinha. O dia indo embora. Tantos perigos. Ofereceu sua companhia até encontrar um táxi. A estação do metrô também não estava longe.
– Obrigada. Eu moro perto.
– Se quiser posso acompanhá-la. Estou sem fazer nada mesmo.
Sentaram-se para um café e nunca mais se deixaram.

100 ANOS DE ENCANTAMENTO



Uma das exposições mais bacanas que vi recentemente foi "Oscar Niemeyer – 100 anos de encantamento", no Memorial da América Latina. As fotos de 360 graus de Luis Claudio Lacerda e Rogério Randolph impressionam pela alta definição e pelo cuidado no registro de algumas das melhores obras do arquiteto Oscar Niemeyer. Selecionei um trecho de um depoimento de Niemeyer, sobre o seu método de trabalho, o qual eu gosto bastante porque é muito próximo de como eu vejo a literatura: "Não acredito numa arquitetura ideal, insubstituível, mas somente em boa arquitetura. Gosto de Le Corbusier, como gosto de Mies, de Picasso como de Matisse, de Machado como de Eça". Quem perdeu pode comprar o livro "Oscar Niemeyer 360 graus". Vale a pena ter em casa.