Está rolando em Amsterdam, nesta semana, o International Queer & Migrant Film Festival, um dos festivais mais interessantes de reflexão sobre a cultura queer, ativismo e migração, o qual tive a honra de participar, no ano passado, com o meu curta “Sábado de Carnaval”, como parte do programa de residência. Lá, conheci muitos jovens diretores do mundo todo, durante uma semana inesquecível! A programação é bastante variada, com debates muito interessantes e tudo coordenado por uma equipe jovem e criativa. Vou citar apenas quatro deles: Chris Belloni, Antoni Karadzoski, Eero Nurmi e Lara Nuberg (pessoas por quem tenho o maior carinho, pelas causas que defendem e pelo modo como nos trataram, no ano passado).
Tão logo saiu a programação deste ano, fiquei de olho nos filmes e selecionei alguns para assistir, sobretudo os brasileiros (quatro, se não me engano), mas como a minha vida está cheia de sobressaltos emocionais, ultimamente, cogitei a possibilidade de não ir à abertura, com a exibição do filme “Tinta Bruta” (Hard Paint), de Marcio Reolon e Filipi Matzembacher. Por sorte, me obriguei a ir. Estava exausto, física e emocionalmente, mas fui. Cheguei em cima da hora, não tinha mais ingressos, mas houve alguma desistência e consegui o meu. A abertura oficial teve apresentações da equipe e júri e até uma fala para explicar a vitória do #elenão. Desnecessário dizer que, nessa hora, morri de vergonha.
Depois de assistir ao filme, saí da sala bastante emocionado. Vou tentar resumir o que é esse filme, a minha percepção sobre o mesmo e por que, na minha opinião, ele é um divisor de águas, dentro do seguimento de filmes LGBTQI+ nacionais. Em linhas gerais, é a história de Pedro, um jovem que faz performances eróticas na webcam, com o corpo coberto de tinta neon, enquanto a sua vida pessoal está desmoronando: processado criminalmente, pessoas próximas e queridas se afastando, sem dinheiro pra pagar o aluguel do apartamento onde mora, etc. Um filme envolto numa atmosfera de niilismo, de descrença no outro, onde tudo parece dar errado, ambientado numa sociedade voraz por querer encaixar as pessoas em rótulos e padrões.
Apesar de ser um filme nacional, a linguagem é totalmente europeia e digo isso sem o menor preconceito. Quem assistiu "Beira-Mar", também da dupla, percebe que eles adoram diálogos longos, um ritmo bem lento, paisagens melancólicas e narrativas existencialistas. "Tinta Bruta" não foge muito do que talvez já seja uma linguagem de trabalho deles, mas o roteiro em três atos, focado em três personagens, trouxe uma bossa ali. Os diálogos são bem feitos, com ótimas tiradas, mas o que me chamou atenção, mesmo, foram as cenas de violência: muito bem dirigidas. Chega a dar um certo calafrio, tamanho realismo. As atuações, no geral, são muito boas, com destaque pro ator Shico Menegat (Pedro/GarotoNeon), mas nada tão extraordinário. A fotografia também é bastante bonita e a trilha é excelente.
Imagino que algumas pessoas podem questionar sobre um certo radicalismo, no filme. Bobagem. Tudo se resolve dentro do contexto e o resultado é ótimo, nada gratuito ou exibicionista. As cenas de nu explícito são justificadas e bonitas. E, nesse aspecto, ele não está sozinho também, "Festa da Menina Morta" e "Boi Neon", por exemplo, já se valeram do mesmo artifício. Espero que ninguém deixe de assistir por causa disso.
Mas, fora tudo isso que já escrevi (e não foi pouco), o que mais me surpreendeu, sem dúvida, foi o fato de ser um filme pretensamente queer, para além das questões de gênero e sexualidade, o que, pra mim, é quase inédito entre os filmes desse gênero, no Brasil. Pedro é o que se pode chamar de gay desconstruído, para usar um termo da moda. E as cenas de sexo, que tem motivações diversas, não tem um peso maior que a própria complexidade dele em existir (ou seria resistir?). Um filme totalmente fora da casinha, mas que veio em boa hora. Torço muito para que muitas pessoas possam perceber também a sua beleza, digamos... estranha.