“Ternura não é a palavra certa, mas explica melhor essa mistura de gratidão em relação ao corpo de onde se tira o prazer, de doçura que se funde quando o prazer escorre, de lassitude física, mesmo de nojo que nos afoga e alivia, que nos afunda e nos faz vagar de tristeza enfim; e essa pobre ternura, emitida um pouco como um raio cinzento e doce, continua a alterar delicadamente os simples relacionamentos físicos entre machos”. Jean Genet
Foi tudo muito rápido. Da saída do metrô foram direto para um hotel, na rua Augusta. Hotel vagabundo, sem néon na fachada, com uma escadaria escura e dedos gordurosos pelas paredes. Queriam compensar a falta de conforto com, no mínimo, um baseado, mas só foram se lembrar deste, quando já estavam lá dentro. “Uma carreira de pó nos esgotaria imediatamente. Ou cairíamos lado a lado, nus, prisioneiros de viagens muito loucas” – pensou Aquele, o mais imaginativo. O Outro era de uma lucidez irritante. Em qualquer lugar, conversava sobre política e a penúria de viver com um salário mínimo. E recitava uns poemas muito estranhos. Ferreira Gullar talvez. Aquele não prestava atenção em nada disso, só queria acreditar que transar era mesmo muito urgente. Sempre ouvia a voz do amigo lhe incitando a essas investidas: “Você precisa dissolver a sua tristeza em sexo”. Quem sabe trocasse o analista por noites inteiras de pegação no Centro, em saunas, banheiros públicos, praças, embaixo de pontes, ou em praias, motéis, drive-ins, carros, parques, clubes, etc e etc. Seria perfeito viver assim, camuflar com gosto a própria tristeza, dizer adeus aos remédios para dormir.
Seguro da sua privacidade, o Outro foi logo tirando a roupa e se atirou desajeitado na cama. O lençol imediatamente se desprendeu e acabou por revelar um colchão velho e com um forte cheiro de mofo. Aquele ainda ficou olhando para o espaço minúsculo, feio, sem uma única gravura nas paredes, imaginando quantas pessoas já teriam passado por ali, quantos amantes não se renderam ao prazer naquele mesmo lugar, quantos homens não teriam traído suas esposas...
– Eu disse que era podrinho. Não disse? – interrompeu o Outro, com um sorriso nos lábios.
– É que eu nunca vim a um lugar como este. Me lembrou um filme chamado “A Bela da Tarde”.
– Tira logo a roupa.
Tão diferentes. Aquele morava num ótimo apartamento em Higienópolis, estudou no Rio Branco, depois Mackenzie, filho de pais rotarianos, com os dois pés na burguesia paulistana. O Outro se escondia em qualquer lugar do Centro, na São João, na Marechal, em bares ou mesmo embaixo do Minhocão. Aquele era branco, rosto suave, ligeiramente afetado e muito romântico. O Outro era mais maduro, jeitão de antigos comunistas, moreno, barba por fazer, cabelos crespos e sempre querendo mudar o mundo.
– Eu vou ao banheiro...
Não houve tempo. O Outro se aproximou cantando uma música de Chico que Aquele ainda não conhecia: “Vem meu menino vadio, vem sem mentir pra você, vem, mas vem sem fantasia, que da noite pro dia, você não vai crescer”... E Aquele nem notara o sexo do Outro já crispado, sanguíneo, exuberante. Então se apoiou no tronco forte e úmido dele e lambeu obediente as suas mãos viscosas, antes que elas libertassem vorazes os botões da sua camisa. Mas alguma coisa lhe incomodava. O Outro agora apalpava suas intimidades com força e lhe dava leves mordidas no rosto. Aquele até tentava corresponder com algum interesse, mas não conseguia se entregar totalmente.
– Só um minuto – gemeu.
– Não está gostando?...
Num impulso, Aquele se trancou no banheiro. E logo percebeu que ali também não havia nenhum luxo. Apenas azulejos muito antigos, um papel higiênico pela metade, uma pia de porcelana branca e um pequeno sabonete sobre duas toalhas de banho. O espelho oval estava manchado. Tudo muito sem graça. Pobre. Bege demais. Aquele então abriu a torneira e deixou que a água transbordasse nas suas mãos em forma de concha. “Não, não é repugnância. Talvez medo. Mas é preciso realizar o ato. Com ou sem dor. ‘Ela toca a doçura do sexo, acaricia a novidade desconhecida’. Acho que é ‘O Amante’. Agora não sei”... E banhou o próprio rosto. Da cama, o Outro quis saber se estava tudo bem.
– Sim, já estou indo – respondeu Aquele, apressado.
– “Quem bate à minha porta tem que aceitar o que ofereço”. – Afinal, você quer ou não quer? – gritou impaciente.
– Precisava me refrescar – se justificou.
Para não aborrecer o Outro, Aquele tomou logo o seu lugar na cama e se posicionou para agradá-lo. Antes, porém, lhe fez uma única exigência: apagar as luzes. E mesmo não se sentindo único, querido ou especial, se entregou sem demonstrar um laivo sequer de tristeza. O Outro então puxou para si o corpo delicado que se oferecia e, minutos depois, completamente saciado, caiu como um javali faminto que acaba de devorar uma plantação inteira de milhos. Seguiu-se um breve e incômodo silêncio, interrompido apenas quando o Outro se levantou e foi direto para o banho. Sozinho, perplexo diante do próprio abandono, Aquele fez que nada entendeu, mas estava lá, estampada em seu rosto, a sua profunda decepção. Logo ele que tinha tão viva, na memória, uma imagem de Mapplethorpe que sempre lhe causava comoção, a de um rapaz numa posição bastante vulnerável, à espera de ser penetrado ou abandonado depois de – adorava essa ambigüidade –, mas sabia que ela despertava nas pessoas mais risos, pelo ridículo da cena, do que compaixão. Aquele nunca riu daquela fotografia e a piedade que ela sempre lhe causou só não era maior da que agora sentia por si mesmo. No banheiro, uma ducha fresca deslizava agradavelmente pelo corpo do Outro, enquanto ele buscava na memória a letra inteira de “Dia Branco”. E bastava errar uma nota ou um verso da canção, para começar tudo de novo: “...Se branco ele for, esse pranto... Esse pranto?... Ou esse tanto de amor?... Se você vier, pro que der e vier, comigo...”.
Aquele, que se sentia agredido na carne e na alma, se lembrou novamente de “O Amante” e agora lhe vinha à cabeça um trecho inteiro do livro, vírgula por vírgula: “Não há sujeira, a sujeira está encoberta, tudo é levado pela torrente, pela força do desejo”. Repetia a si mesmo, na tentativa de não se arrepender do que fez. Mas não adiantou. Estava com raiva. Cansado de tanto desperdício de prazer sem ternura. Dos que se satisfazem e vão embora. De bocas estranhas, imundas, que beijam sem nenhuma paixão. De homens igualmente estranhos e imundos que, quase sempre, lhe ferem sem nada dizer. “Até quando vai ser assim, meu Deus? Até perder o gosto pelo prazer? Até não existir mais prazer?” – disse, dentro de si, cheio de revolta. E depois começou a se virar na cama tentando esmagar os próprios pensamentos e reter uma lágrima que insistia em brotar.
– Você não vai se lavar? – disse o Outro, saindo do banheiro.
A pergunta chegou Àquele atravessada, infeliz, como um desses desaforos que só machucam. “Por que não me perguntou ‘posso cuidar de você’? Lavar??? Por Deus!!! Como se eu fosse uma cueca velha. A sua cueca velha e encardida. Esse é o tipo de homem que eu recebo dentro de mim. Eu sou mesmo um idiota com i maiúsculo...” – e continuaria ainda se punindo em silêncio.
– Estou falando com você – interrompeu o Outro, confuso.
– Com licença. Vou tomar o meu banho – disse sublinhando o “meu banho”, entre seco e irônico.
O Outro não entendeu nada e nem se esforçou para fazê-lo, queria logo se espalhar na cama e dormir, dormir, dormir. Já embaixo do chuveiro, enquanto a água corria sem pressa, Aquele fechou os olhos e se imaginou dentro de uma incrível banheira, dessas de capa de revista, repleta de detergente. Odiaria, sobretudo, acordar no dia seguinte e ainda encontrar algum vestígio da baba viscosa do Outro. Do seu líquido seminal. “Me senti uma mercenária do sexo. Até elas devem receber mais carinho do que eu” – dramatizou. Enquanto isso, o Outro dormia pesado. E roncava. Alto. E era patética a sua cara de homem feliz, com a sua triste arrogância sigilosa.
Aquele até reconhecia que o caráter urgente do sexo lhe facilitava alguns equívocos amorosos, mas dividir novamente a cama com o Outro não fazia o menor sentido, ultrapassava a sua tolerância à falta de carinho e gratidão para com as pessoas. Só lhe restava então uma única alternativa: sair dali imediatamente. E, em cinco minutos, não mais do que isso, ele ganhou as ruas de São Paulo outra vez. O vento agora acariciava o seu rosto. As pessoas passeavam felizes, ao seu lado. Ele próprio esquecera que era sexta-feira à noite. Que se chamava Paulo Ribeiro de Carvalho. Que uma cama macia e dois travesseiros o aguardavam, ali perto. Um golden retriever também. E aquela sensação de alívio logo se transformou na alegria de saber-se livre do Outro. Pensou ainda em sair dançando. Ou entrar no Athenas e pedir um drinque. Ou um suco de melancia com gengibre e sem açúcar. E, em casa, agiu como se nada tivesse acontecido. Tomou um novo e demorado banho, vestiu o seu confortável pijama, entrou em seus sites de relacionamentos favoritos, consultou a agenda cultural para o final de semana, planejou almoçar com os amigos, diminuiu o ar condicionado... Sentiu-se exausto e adormeceu. E nem se lembrou de tomar o seu remédio para dormir.